02 Junho 2023
Artigo de Faustino Teixeira
"Penso
que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos
ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor
ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito
bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma
linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem
precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os
pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da
alegria", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito
da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Eis
o artigo.
“Se
por acaso morrer do coração / É sinal que amei demais / Mas
enquanto estou viva / Cheia de graça / Talvez ainda faça / Um monte
de gente feliz!” – Rita Lee
Em
sua Outra biografia, publicada no Brasil em 2023 pela GloboLivros,
Rita Lee relata o seu sentimento ao saber do diagnóstico de câncer,
em abril de 2021. Era um câncer de vinte centímetro de perímetro
no pulmão esquerdo. Assim ela relata o começo de sua jornada pela
doença e a dinâmica de seu tratamento. Foi uma situação que
ocorreu durante a pandemia da Covid, o que complicou o processo. Com
a retirada dos remédios tarja preta, a situação psicológica se
complexificou, com relatos difíceis sobre as insônias no hospital.
Chegou a passar três dias e três noites sem dormir.
Na
conversa dela com seu médico oncologista narrou o trauma daquele
início de internação e solicitou ao profissional que intervisse
terminando logo com a história de sofrimentos que começava e se
anunciava cada vez mais difícil. Em sua narrativa ela desejava que
tudo aquilo ali acabasse logo de uma vez, e que por ela “tomava o
´chazinho da meia-noite` para ir desta para melhor” [1]. Solicitou
a ele que a “deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e
consciente; queria estar atenta para logo recomeçar” seu “caminho
em outra dimensão”.
Expressou
com clareza para o especialista que era “totalmente favorável à
eutanásia” e que era preciso “morrer com dignidade”. A
reflexão de Rita vinha corroborada pela triste memória do
sofrimento de sua mãe durante o tratamento contra o câncer, que não
significou para ela um horizonte diferente daquele vivido por tantas
outra pessoas que morreram com a doença.
Diante
da proposta da cantora, o médico contra-argumentou defendendo outro
caminho, buscando explicar a ela as grandes mudanças sofridas pela
medicina nos últimos 45 anos, e argumentando em favor da
imunoterapia, “um tratamento relativamente novo que rendeu o prêmio
Nobel de Medicina em 2018 ao estadunidense James P. Allison” [2].
Sugeriu
ainda que ela fizesse o tratamento conjugando-o com a radioterapia.
Rita Lee só aceitou submeter-se ao tratamento pelo amor de seus
queridos “boys Carvalho/Lee”, que a aconselharam a fazer o
tratamento indicado, mas reitera que por ela a cerimônia de adeus ao
“mundo cruel” estaria decidida.
Rita
Lee em show realizado no Circo Voador em 2011. (Foto: Carol Mendonça
| www.focka.com.br)
Como
a imunoterapia não surtiu o efeito esperado, Rita Lee teve que se
submeter à quimioterapia, que denominou de “ceifadora Cruela”, e
outros sofrimentos vieram se somar às crises de pânico, como o
caroço que apareceu perto de sua costela direita e que apelidou de
Jair.
Tudo
tão difícil, apesar do carinho imenso concedido pela família.
Ainda com esperança, Rita passou a “invocar força para os
soldados da Luz curadora que enfrentariam os inimigos mocozeados”
dentro de si [3]. Nas sessões de químio lembrava-se sempre de sua
mãe, que ao final foi se tornando “uma flor cada vez mais murcha e
amarronzada”.
Rita
se deu conta de que todo aquele procedimento químico era a expressão
viva de que ainda estávamos na “Idade Mérdia”, com medicamentos
cada vez mais onerosos e que alimentavam a sede voraz da indústria
farmacêutica [4], que, aliás, continua a financiar os congressos de
profissionais da área. Após as sessões de químio, Rita sentia a
pegada do medicamento. Dizia que no dia seguinte o corpo ficava de
tal forma dolorido, que era como se ela “tivesse lutado com Mike
Tyson” [5]. E vinha, às vezes, com densidade, a vontade de “fazer
a passagem em casa e sem dor” [6].
Em
outros momentos era tomada por um fenômeno bonito, quando batia “um
estado de graça” que a fazia agradecer a Deus os “segundos de
epifania e bênção existencial, uma espécie de kundalini que dura
uma brisa” [7]. Eram pequenos “jorros de luz”, que não duravam
senão segundos [8]. Era, por exemplo, a sensação bonita que sentia
ao estar no banho, sob o chuveiro, podendo agradecer ao Plano Divino
“por estar naquele lugar” que a fazia lembrar de uma generosa
cachoeira [9].
Era
uma vida que mesclava sofrimento e réstias frágeis de alegria. Às
vezes, comenta Lee, baixava “uma deprê, uma angústia, uma
melancolia captada” por sua “antena paradiabólica” e então
largava-se “debaixo de uma cabaninha feita de lençol, debaixo da
cama ou de dentro de um armário” [10].
Ao
ler essa passagem veio-me imediatamente a imagem do filme Melancolia,de Lars von Trier, com aqueles sobreviventes tentando se proteger do
violento planeta que vinha ao encontro deles numa frágil cabaninha
improvisada de bambus. É o que ocorre muitas vezes com os doentes de
câncer, que buscam se amparar em frágeis esperanças. Alguns têm
sorte, mas outros são vencidos pela flecha da realidade.
Rita
Lee sofria igualmente ao pensar “nos doentes entubados vegetando e
que ninguém desligava os aparelhos dos coitados para eles terem uma
morte digna” [11]. Era igualmente difícil para ela, uma mulher que
sempre foi independente e livre, estar agora dependendo dos outros
para fazer coisas simples, e ver anexadas ao seu corpo as sondas que
propiciavam sua alimentação. O que a mantinha firme no desejo de
continuar viva era estar diante da beleza do amor dos queridos que a
acompanhavam, apesar de seus 38 quilos. E certo dia escreveu na porta
de um banheiro do hospital: “Foda-se, o que vier eu traço” [12].
Não
era, porém, nada fácil lidar com a dura realidade, como, por
exemplo estar nu diante do espelho. Diz Rita: “Outro dia fui tomar
banho e me deparei comigo pelada na frente do espelho e enxerguei uma
franga depenada, perninhas de graveto, pele amarelada da rádio,
coxas drapeadas, ou seja, uma galinha velha que nem bom caldo daria”
[13]. Há cenas muito duras no livro, quando por exemplo Rita
descreve as “coisas” que saíram de seu organismo durante seu
tratamento. Ela menciona um impressionante episódio que ocorreu com
ela, quando viu sair de seu corpo “uma tripa cor de carne crua”
de cerca dez centímetros. Pensou até em fotografar a coisa
estranha, mas acabou logo jogando aquilo no vaso e deu descarga [14].
E como era difícil lidar com o xixi com cheiro de Chernobyl [15].
Fiquei
impressionado com a tranquilidade e a maturidade de Rita Lee diante
desta hipótese ainda sem nenhuma cidadania no Brasil. É duro
perceber que ela passou por momentos muito difíceis em seu
tratamento, com crises tremendas de pânico, insônias e outra
situações.
Na
última página de sua autobiografia, Rita Lee, depois de saber que
no último Pet Scan as notícias não eram nada favoráveis, revela a
importância de viver a partir daí “um dia de cada vez”. Tudo ao
seu redor foi se acalmando, até seus bichinhos mais queridos. E na
última frase, revela: “Tudo bem. Quando eu morrer, não levo
nenhum abajur, só o amor dos bichos” [16].
Na linda entrevista concedida por Roberto de Carvalho no Fantástico de 14 de maio de 2023, ele revelou para Renata Ciribelli que em verdade
Rita não queria partir, pois amava muito a vida. Ela tinha
consciência clara de que sua Outra Autobiografia era mesmo o seu
“último ato”. Roberto, em momento singular da entrevista, narra
que os momentos finais da cantora foram de grande leveza, calma e
doçura. Já consciente da gravidade de sua situação, foi se
apagando levemente, como a luz da vela, sem perder o brilho. Seu
grande amor revelou que ela ao final parecia uma criancinha, um
passarinho, que foi sossegando até partir em paz [17].
Ainda
sobre esse complexo tema da Eutanásia gosto de mencionar um livro em
particular, de autoria Irvin D. Yalom e Marilin Yalom: Uma questão
de vida e morte. Amor, perda e o que realmente importa no final. São
Paulo: Planeta 2021.
É
a história de um casal que passou toda a vida numa união bonita e
profunda, e que enfrenta com coragem e seriedade o desafio da morte,
a “indesejada das gentes” que acabou separando um enlace de
sessenta e cinco anos. No prefácio da edição brasileira, escrito
por Alexandre Coimbra Amaral, ele sublinha que o melhor mérito do
livro foi desvendar a verdade desconcertante com que o casal lidou e
escreveu sobre a proximidade da morte [18].
Livro
trata sobre o tema da eutanásia. (Foto: Divulgação)
Digo
a vocês, que a cada dia que passa venho refletindo com seriedade
sobre esta questão da eutanásia, da ortotanásia e da distanásia.
A eutanásia ocorre quando a morte vem antecipada com a finalidade de
interromper o sofrimento de doentes terminais, sem chance alguma de
recuperação.
A
eutanásia envolve a presença de um agente externo. Há casos também
de suicídio assistido, quando o próprio paciente em estado terminal
solicita a interrupção da vida. A ortotanasia respeita a morte no
tempo certo. É um procedimento que busca resguardar ao máximo a
humanização do paciente na sua dinâmica de travessia. A distanásia
busca prolongar ao máximo a vida do paciente, mediante o recurso de
instrumentos artificiais.
A
prática da eutanásia é permitida em alguns países como a Holanda,
Bélgica, Luxemburgo, Suíça (no caso, o suicídio assistido),
Canadá e alguns lugares dos Estados Unidos, como os estados da
Califórnia, Montana e Oregon. A prática não vem permitida no
Brasil, sendo proibida por lei.
São
vários os argumentos que vêm a meu favor, sobretudo no caso de
pessoas mais idosas, que são forçadas a viverem situações de
muita dor e solidão nos momentos derradeiros de sua vida, sobretudo
diante de casos que são comprovadamente terminais. E numa sociedade
onde talvez sejamos os últimos casos em que os filhos ainda cuidam
dos pais nesses momentos duros de passagem.
Há
também outro agravante, com a mudanças em planos de saúde, que
acabam não cobrindo gastos pesados com o tratamento oncológico, por
exemplo. De médicos que aceitam a cuidar dos pacientes durante as
consultas clínicas com a cobertura de planos de saúde, mas que nas
cirurgias cobram por seus procedimentos. Tem também a ciranda das
opiniões de especialistas, cada qual dando o seu pitaco, com
referências fundadas nos periódicos mais avançados, e opiniões
contrastantes que deixa o paciente e sua família num grande
atordoamento face às sérias decisões a serem tomadas. Em sua
recente autobiografia, Rita Lee desabafa: “Estou cansada de chutes
dos tais especialistas, que um dia dizem uma coisa e no outro
desdizem na cara dura” [19].
Além
da luta dos pacientes para conseguirem cobertura para os medicamentos
de altíssimo custo para o tratamento. Quando ocorre a decisão legal
favorável, que demanda tempo, nem sempre estão mais em condições
de saúde de responder ao medicamento. São situações concretas
que quebram financeiramente qualquer família. É claro que ainda
temos o SUS que é a salvação de muito gente nesse país do
descaso.
Acho
que o tema mereceria um debate mais digno por parte dos profissionais
de saúde, e de outros segmentos do saber como filósofos, teólogos,
antropólogos, profissionais da saúde, literatos e outros estudiosos
de temas relacionados às doenças terminais e aos tratamentos
paliativos em curso e a preparação da morte.
Na
minha visão pessoal, não tenho dificuldade alguma com a eutanásia,
embora admita que a ortotanásia surta efeitos positivos para certos
casos. Temos, sim, que oferecer condições mais dignas para o morrer
e superar preconceitos ou teses de fundo teológico ou religioso que
obstaculizam uma reflexão mais ousada e séria sobre a questão.
O
teólogo que mais me ajudou a refletir sobre o tema foi o suíço
Hans Küng em seu brilhante livro: “Uma batalha ao longo da vida:
ideias, paixões, esperanças. A minha recordação do século
(Editora Rizzoli de Milão, 2014, sendo o original de 2002). Ele
aborda ao final de seu longo livro a questão do envelhecimento.
Narra
com pormenores o seu caso pessoal de deterioração de sua condição
de saúde. Fala das moléstias que começaram a prejudicar os seus
órgãos fundamentais: as artroses nas mãos, o prejuízo na audição,
os problemas na vista e sobretudo o Parkinson.
Ele
lança na ocasião uma pergunta fundamental: “Por quanto tempo
continuarei a estar bem?”. Fala também da sua vontade de morrer em
casa e não internado e isolado num hospital ou casa de cura. Ele
reflete com seriedade sobre o tema, contrabalançando sua posição
em favor da eutanásia com os argumentos em contrário. E levanta uma
questão muito séria: “Onde está escrito que o ser humano tenha
que perder a responsabilidade de sua própria existência quando se
depara com o fim da vida?” [20]
Na
leitura do evangelho de João, se diz em certo momento:
"Em
verdade, em verdade, te digo:
Quando
eras jovem
tu
te cingias
e
anda por onde querias;
quando
fores velho,
estenderás
as mãos
e
outro te cingirá
e
te conduzirás aonde não queres ir” (Jo 21, 18)
O
teólogo Hans Küng acerta em ao levantar uma questão que é
decisiva: “O ser humano tem o direito de morrer quando não vê
mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios
pessoais” [21]. Relata pormenorizadamente sobre o modo como
gostaria de morrer e seus planos de adesão a uma organização suíça
em favor da eutanásia. No seu caso, morreu antes, em abril de 2021,
mas deixou para nós essa importante reflexão, que não pode ser
relegada.
Na
ocasião em que escreveu o livro, publicado em 2002, ele fala da
experiência de uma forma bonita, digna e séria:
“Entro
assim no infinito da pessoa finita. Embarco numa última e decisiva
estrada, totalmente diversa, não em direção ao cosmos e nem além
de seus confins, mas para o núcleo da realidade” [22].
Fala
também do retorno ao Mistério de Deus. Reconhece com dignidade,
como cristão, que ao final da vida não estará diante do nada, mas
do “tudo que é Deus”. E acrescenta: “Justamente na hora da
tristeza e do adeus, que celebramos com gratidão, devemos encontrar
a fé e a força para afrontar também o futuro, o nosso futuro, sem
ter muito medo da morte” [23].
No
epílogo do livro, Hans Küng reflete sobre o seu “último amém”,
quando passa a enfrentar a gravidade de sua degeneração macular e o
Parkinson, que provocam graves empecilhos ao que ele mais gosta de
fazer que é escrever. Sublinha que nesse tempo derradeiro vem
brindado com a alegria da leitura livre e prazerosa, da escuta
gratuita das músicas que o apetecem e do encontro com os amigos.
Revela
sua emoção ao poder contemplar o que há de belo e maravilhoso ao
seu redor. Reitera a consciência de que ele é sujeito da complexa
decisão de quando e como morrer é algo que diz respeito à sua
responsabilidade. E confirma com serenidade que no horizonte de sua
vida estará entregue nas misericordiosas mãos de Deus [24].
Fui
muito tocado pelo filme franco canadense, dirigido por Denys Arcand,
“As Invasões Bárbaras”, onde esse argumento vem abordado de
forma simplesmente maravilhosa.
Penso
que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos
ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor
ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito
bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma
linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem
precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os
pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da
alegria. Viva a Vida!
Para
concluir, partilho essa linda oração de um mestre tibetano que era
objeto da meditação diária de Rita Lee. O seu nome: “A grande
invocação”:
“Do
ponto de Luz na mente de Deus, que flutua Luz à mente
dos
homens, que a Luz desça à Terra.
Do
ponto de Amor no coração de Deus, que flua Amor
ao
coração dos homens, que Cristo retorne à Terra.
Do
centro onde a vontade de Deus é conhecida, que o
Propósito
guie as pequenas vontades dos homens, o Propósito
que
os mestres conhecem e servem.
Do
centro a que chamamos a raça dos homens, que
se
realize o Plano de Amor e de Luz e feche a porta onde
se
encontra o mal.
Que
a Luz e o Amor e o Poder restabeleçam o Plano Divino
sobre
a Terra".
Fonte: Ihu unisinos, com vários links.