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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Projeto de lei de morte assistida esperado não tem utilidade para pacientes com Parkinson, diz ex-juiz

Sir Nicholas Mostyn diz que o projeto de lei que cobre apenas pessoas com menos de seis meses de vida não ajudaria 'Parkies' como ele

Dom, 13 de outubro de 2024 - Um projeto de lei de morte assistida que permitiria apenas que pessoas com menos de seis meses de vida recebessem ajuda para morrer não seria útil para pessoas que enfrentam sofrimento intolerável, disse um juiz aposentado da Suprema Corte.

Sir Nicholas Mostyn, que tem a doença degenerativa de Parkinson, disse que pessoas como ele "seriam deixadas na praia" se a legislação potencialmente histórica que cobre a Inglaterra e o País de Gales, que deve ser publicada na quarta-feira, limitar o acesso à ajuda com suicídio apenas para pessoas com doenças terminais.

Espera-se que o projeto de lei seja semelhante às leis do estado americano de Oregon, onde ajudar as pessoas a morrer que não têm menos de seis meses de vida continua ilegal.

O detalhe ainda não foi publicado, mas Mostyn, 67, disse ao Sunday Times: "Parkies [um termo usado por alguns pacientes] nunca terão um diagnóstico terminal, então este projeto de lei não é útil. Na Espanha [onde o limite para a morte assistida legal é intolerável sofrer de uma doença ou condição incurável], o Parkinson é uma das razões mais comuns para ver a morte assistida ... Há um grupo de pessoas como nós que isso não vai ajudar e ficamos com a lei existente e mais insatisfatória.

As leis atuais no Reino Unido tornam crime ajudar alguém a morrer. Os parlamentos da Escócia e da Ilha de Man estão considerando projetos de lei para permitir a morte assistida restrita para adultos com doenças terminais, e em Jersey a legislação deve ser apresentada no próximo ano.

A parlamentar trabalhista Kim Leadbeater apresentará o projeto de lei proposto para a Inglaterra e o País de Gales, que resultará na primeira votação na Câmara dos Comuns sobre o assunto desde que os parlamentares rejeitaram uma mudança na lei em 2015 por 330 votos a 118.

Uma pesquisa realizada este mês pela Ipsos descobriu que dois terços dos adultos do Reino Unido acreditam que deveria ser legal para um médico ajudar um paciente com mais de 18 anos a acabar com sua vida, prescrevendo medicamentos que o paciente pode tomar sozinho. Ele descobriu que 64% achavam que um médico deveria ter permissão para administrar a dose fatal nesses casos.

A pesquisa descobriu que 57% acreditam que deveria ser legal para um médico ajudar adultos a acabar com suas vidas se eles não estiverem em estado terminal, mas estiverem sofrendo fisicamente de uma maneira que consideram insuportável, e que não pode ser curada ou melhorada com a ciência médica existente e onde o paciente expressou um desejo claro de acabar com sua vida. O nível de apoio cai para 35% se a pessoa estiver sofrendo mental ou emocionalmente.

Keir Starmer disse que permitirá aos parlamentares trabalhistas uma votação livre sobre o assunto, o que provavelmente acontecerá ainda este ano. O governo permanecerá neutro e os membros do gabinete serão livres para votar como quiserem.

O secretário de saúde, Wes Streeting, está entre os membros do gabinete que expressaram dúvidas. Em julho, ele disse: "Os cuidados paliativos neste país são bons o suficiente para que essa escolha seja uma escolha real, ou as pessoas acabariam com suas vidas mais cedo do que gostariam porque os cuidados paliativos, os cuidados de fim de vida, não são tão bons quanto poderiam ser?"

Care Not Killing, um grupo de campanha que se opõe a uma mudança na lei, diz que tal lei pressionaria as pessoas vulneráveis a acabar com suas vidas por medo de ser um fardo financeiro, emocional ou de cuidado para os outros. Ele diz que isso "afetaria especialmente pessoas com deficiência, idosos, doentes ou deprimidos".

Ele argumenta: "As pesquisas de opinião pública podem ser facilmente manipuladas quando 'casos difíceis' de alto perfil da mídia (e muitas vezes impulsionados por celebridades) são usados para provocar respostas reflexas emocionais sem considerar os fortes argumentos contra a legalização".

Mostyn aparece em um podcast chamado Movers and Shakers com vários outros pacientes de Parkinson, incluindo os ex-jornalistas da BBC News Mark Mardell, Gillian Lacey-Solymar e Jeremy Paxman e o vigário do escritor de Dibley, Paul Mayhew-Archer.

Em um episódio sobre morte assistida que deve ser lançado no próximo sábado, Lacey-Solymar disse: "Vamos ver o quão ruim algo como o Parkinson pode ficar - digamos que você seja duplamente incontinente, não pode mais falar, está com dor, não pode se mover. Qual é o sentido de viver? O que me aterroriza são os anos à frente desse terrível estado vegetativo que acontece com muitas pessoas com Parkinson.

Mardell disse: "Eu acho que é direito de todos se matarem e que não devemos ouvir nossa herança cristã ocidental, mas sim ser mais como os romanos e japoneses, talvez, e respeitar aqueles que querem se matar. Para mim, o problema é que a única vez que eu gostaria de morrer é quando não aguentava mais e não conseguia tomar a decisão. Eu abomino o suicídio como alguém que acha a vida muito doce. Mesmo que a lente fique mais estreita, quero continuar vivendo, mas não sei como você faz essa distinção e impede que as pessoas se matem de depressão, mas ainda permite que as pessoas com Parkinson sejam prejudicadas. Fonte: The Guardian.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

A Eutanásia em questão: reflexões a partir da Travessia de Rita Lee

02 Junho 2023 

Artigo de Faustino Teixeira

"Penso que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da alegria", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Se por acaso morrer do coração / É sinal que amei demais / Mas enquanto estou viva / Cheia de graça / Talvez ainda faça / Um monte de gente feliz!” – Rita Lee

Em sua Outra biografia, publicada no Brasil em 2023 pela GloboLivros, Rita Lee relata o seu sentimento ao saber do diagnóstico de câncer, em abril de 2021. Era um câncer de vinte centímetro de perímetro no pulmão esquerdo. Assim ela relata o começo de sua jornada pela doença e a dinâmica de seu tratamento. Foi uma situação que ocorreu durante a pandemia da Covid, o que complicou o processo. Com a retirada dos remédios tarja preta, a situação psicológica se complexificou, com relatos difíceis sobre as insônias no hospital. Chegou a passar três dias e três noites sem dormir.

Na conversa dela com seu médico oncologista narrou o trauma daquele início de internação e solicitou ao profissional que intervisse terminando logo com a história de sofrimentos que começava e se anunciava cada vez mais difícil. Em sua narrativa ela desejava que tudo aquilo ali acabasse logo de uma vez, e que por ela “tomava o ´chazinho da meia-noite` para ir desta para melhor” [1]. Solicitou a ele que a “deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria estar atenta para logo recomeçar” seu “caminho em outra dimensão”.

Expressou com clareza para o especialista que era “totalmente favorável à eutanásia” e que era preciso “morrer com dignidade”. A reflexão de Rita vinha corroborada pela triste memória do sofrimento de sua mãe durante o tratamento contra o câncer, que não significou para ela um horizonte diferente daquele vivido por tantas outra pessoas que morreram com a doença.

Diante da proposta da cantora, o médico contra-argumentou defendendo outro caminho, buscando explicar a ela as grandes mudanças sofridas pela medicina nos últimos 45 anos, e argumentando em favor da imunoterapia, “um tratamento relativamente novo que rendeu o prêmio Nobel de Medicina em 2018 ao estadunidense James P. Allison” [2].

Sugeriu ainda que ela fizesse o tratamento conjugando-o com a radioterapia. Rita Lee só aceitou submeter-se ao tratamento pelo amor de seus queridos “boys Carvalho/Lee”, que a aconselharam a fazer o tratamento indicado, mas reitera que por ela a cerimônia de adeus ao “mundo cruel” estaria decidida.

Rita Lee em show realizado no Circo Voador em 2011. (Foto: Carol Mendonça | www.focka.com.br)

Como a imunoterapia não surtiu o efeito esperado, Rita Lee teve que se submeter à quimioterapia, que denominou de “ceifadora Cruela”, e outros sofrimentos vieram se somar às crises de pânico, como o caroço que apareceu perto de sua costela direita e que apelidou de Jair.

Tudo tão difícil, apesar do carinho imenso concedido pela família. Ainda com esperança, Rita passou a “invocar força para os soldados da Luz curadora que enfrentariam os inimigos mocozeados” dentro de si [3]. Nas sessões de químio lembrava-se sempre de sua mãe, que ao final foi se tornando “uma flor cada vez mais murcha e amarronzada”.

Rita se deu conta de que todo aquele procedimento químico era a expressão viva de que ainda estávamos na “Idade Mérdia”, com medicamentos cada vez mais onerosos e que alimentavam a sede voraz da indústria farmacêutica [4], que, aliás, continua a financiar os congressos de profissionais da área. Após as sessões de químio, Rita sentia a pegada do medicamento. Dizia que no dia seguinte o corpo ficava de tal forma dolorido, que era como se ela “tivesse lutado com Mike Tyson” [5]. E vinha, às vezes, com densidade, a vontade de “fazer a passagem em casa e sem dor” [6].

Em outros momentos era tomada por um fenômeno bonito, quando batia “um estado de graça” que a fazia agradecer a Deus os “segundos de epifania e bênção existencial, uma espécie de kundalini que dura uma brisa” [7]. Eram pequenos “jorros de luz”, que não duravam senão segundos [8]. Era, por exemplo, a sensação bonita que sentia ao estar no banho, sob o chuveiro, podendo agradecer ao Plano Divino “por estar naquele lugar” que a fazia lembrar de uma generosa cachoeira [9].

Era uma vida que mesclava sofrimento e réstias frágeis de alegria. Às vezes, comenta Lee, baixava “uma deprê, uma angústia, uma melancolia captada” por sua “antena paradiabólica” e então largava-se “debaixo de uma cabaninha feita de lençol, debaixo da cama ou de dentro de um armário” [10].

Ao ler essa passagem veio-me imediatamente a imagem do filme Melancolia,de Lars von Trier, com aqueles sobreviventes tentando se proteger do violento planeta que vinha ao encontro deles numa frágil cabaninha improvisada de bambus. É o que ocorre muitas vezes com os doentes de câncer, que buscam se amparar em frágeis esperanças. Alguns têm sorte, mas outros são vencidos pela flecha da realidade.

Rita Lee sofria igualmente ao pensar “nos doentes entubados vegetando e que ninguém desligava os aparelhos dos coitados para eles terem uma morte digna” [11]. Era igualmente difícil para ela, uma mulher que sempre foi independente e livre, estar agora dependendo dos outros para fazer coisas simples, e ver anexadas ao seu corpo as sondas que propiciavam sua alimentação. O que a mantinha firme no desejo de continuar viva era estar diante da beleza do amor dos queridos que a acompanhavam, apesar de seus 38 quilos. E certo dia escreveu na porta de um banheiro do hospital: “Foda-se, o que vier eu traço” [12].

Não era, porém, nada fácil lidar com a dura realidade, como, por exemplo estar nu diante do espelho. Diz Rita: “Outro dia fui tomar banho e me deparei comigo pelada na frente do espelho e enxerguei uma franga depenada, perninhas de graveto, pele amarelada da rádio, coxas drapeadas, ou seja, uma galinha velha que nem bom caldo daria” [13]. Há cenas muito duras no livro, quando por exemplo Rita descreve as “coisas” que saíram de seu organismo durante seu tratamento. Ela menciona um impressionante episódio que ocorreu com ela, quando viu sair de seu corpo “uma tripa cor de carne crua” de cerca dez centímetros. Pensou até em fotografar a coisa estranha, mas acabou logo jogando aquilo no vaso e deu descarga [14]. E como era difícil lidar com o xixi com cheiro de Chernobyl [15].

Fiquei impressionado com a tranquilidade e a maturidade de Rita Lee diante desta hipótese ainda sem nenhuma cidadania no Brasil. É duro perceber que ela passou por momentos muito difíceis em seu tratamento, com crises tremendas de pânico, insônias e outra situações.

Na última página de sua autobiografia, Rita Lee, depois de saber que no último Pet Scan as notícias não eram nada favoráveis, revela a importância de viver a partir daí “um dia de cada vez”. Tudo ao seu redor foi se acalmando, até seus bichinhos mais queridos. E na última frase, revela: “Tudo bem. Quando eu morrer, não levo nenhum abajur, só o amor dos bichos” [16].

Na linda entrevista concedida por Roberto de Carvalho no Fantástico de 14 de maio de 2023, ele revelou para Renata Ciribelli que em verdade Rita não queria partir, pois amava muito a vida. Ela tinha consciência clara de que sua Outra Autobiografia era mesmo o seu “último ato”. Roberto, em momento singular da entrevista, narra que os momentos finais da cantora foram de grande leveza, calma e doçura. Já consciente da gravidade de sua situação, foi se apagando levemente, como a luz da vela, sem perder o brilho. Seu grande amor revelou que ela ao final parecia uma criancinha, um passarinho, que foi sossegando até partir em paz [17].

Ainda sobre esse complexo tema da Eutanásia gosto de mencionar um livro em particular, de autoria Irvin D. Yalom e Marilin Yalom: Uma questão de vida e morte. Amor, perda e o que realmente importa no final. São Paulo: Planeta 2021.

É a história de um casal que passou toda a vida numa união bonita e profunda, e que enfrenta com coragem e seriedade o desafio da morte, a “indesejada das gentes” que acabou separando um enlace de sessenta e cinco anos. No prefácio da edição brasileira, escrito por Alexandre Coimbra Amaral, ele sublinha que o melhor mérito do livro foi desvendar a verdade desconcertante com que o casal lidou e escreveu sobre a proximidade da morte [18].


Livro trata sobre o tema da eutanásia. (Foto: Divulgação)

Digo a vocês, que a cada dia que passa venho refletindo com seriedade sobre esta questão da eutanásia, da ortotanásia e da distanásia. A eutanásia ocorre quando a morte vem antecipada com a finalidade de interromper o sofrimento de doentes terminais, sem chance alguma de recuperação.

A eutanásia envolve a presença de um agente externo. Há casos também de suicídio assistido, quando o próprio paciente em estado terminal solicita a interrupção da vida. A ortotanasia respeita a morte no tempo certo. É um procedimento que busca resguardar ao máximo a humanização do paciente na sua dinâmica de travessia. A distanásia busca prolongar ao máximo a vida do paciente, mediante o recurso de instrumentos artificiais.

A prática da eutanásia é permitida em alguns países como a Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suíça (no caso, o suicídio assistido), Canadá e alguns lugares dos Estados Unidos, como os estados da Califórnia, Montana e Oregon. A prática não vem permitida no Brasil, sendo proibida por lei.

São vários os argumentos que vêm a meu favor, sobretudo no caso de pessoas mais idosas, que são forçadas a viverem situações de muita dor e solidão nos momentos derradeiros de sua vida, sobretudo diante de casos que são comprovadamente terminais. E numa sociedade onde talvez sejamos os últimos casos em que os filhos ainda cuidam dos pais nesses momentos duros de passagem.

Há também outro agravante, com a mudanças em planos de saúde, que acabam não cobrindo gastos pesados com o tratamento oncológico, por exemplo. De médicos que aceitam a cuidar dos pacientes durante as consultas clínicas com a cobertura de planos de saúde, mas que nas cirurgias cobram por seus procedimentos. Tem também a ciranda das opiniões de especialistas, cada qual dando o seu pitaco, com referências fundadas nos periódicos mais avançados, e opiniões contrastantes que deixa o paciente e sua família num grande atordoamento face às sérias decisões a serem tomadas. Em sua recente autobiografia, Rita Lee desabafa: “Estou cansada de chutes dos tais especialistas, que um dia dizem uma coisa e no outro desdizem na cara dura” [19].

Além da luta dos pacientes para conseguirem cobertura para os medicamentos de altíssimo custo para o tratamento. Quando ocorre a decisão legal favorável, que demanda tempo, nem sempre estão mais em condições de saúde de responder ao medicamento. São situações concretas que quebram financeiramente qualquer família. É claro que ainda temos o SUS que é a salvação de muito gente nesse país do descaso.

Acho que o tema mereceria um debate mais digno por parte dos profissionais de saúde, e de outros segmentos do saber como filósofos, teólogos, antropólogos, profissionais da saúde, literatos e outros estudiosos de temas relacionados às doenças terminais e aos tratamentos paliativos em curso e a preparação da morte.

Na minha visão pessoal, não tenho dificuldade alguma com a eutanásia, embora admita que a ortotanásia surta efeitos positivos para certos casos. Temos, sim, que oferecer condições mais dignas para o morrer e superar preconceitos ou teses de fundo teológico ou religioso que obstaculizam uma reflexão mais ousada e séria sobre a questão.

O teólogo que mais me ajudou a refletir sobre o tema foi o suíço Hans Küng em seu brilhante livro: “Uma batalha ao longo da vida: ideias, paixões, esperanças. A minha recordação do século (Editora Rizzoli de Milão, 2014, sendo o original de 2002). Ele aborda ao final de seu longo livro a questão do envelhecimento.

Narra com pormenores o seu caso pessoal de deterioração de sua condição de saúde. Fala das moléstias que começaram a prejudicar os seus órgãos fundamentais: as artroses nas mãos, o prejuízo na audição, os problemas na vista e sobretudo o Parkinson.

Ele lança na ocasião uma pergunta fundamental: “Por quanto tempo continuarei a estar bem?”. Fala também da sua vontade de morrer em casa e não internado e isolado num hospital ou casa de cura. Ele reflete com seriedade sobre o tema, contrabalançando sua posição em favor da eutanásia com os argumentos em contrário. E levanta uma questão muito séria: “Onde está escrito que o ser humano tenha que perder a responsabilidade de sua própria existência quando se depara com o fim da vida?” [20]

Na leitura do evangelho de João, se diz em certo momento:

"Em verdade, em verdade, te digo:

Quando eras jovem

tu te cingias

e anda por onde querias;

quando fores velho,

estenderás as mãos

e outro te cingirá

e te conduzirás aonde não queres ir” (Jo 21, 18)

O teólogo Hans Küng acerta em ao levantar uma questão que é decisiva: “O ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais” [21]. Relata pormenorizadamente sobre o modo como gostaria de morrer e seus planos de adesão a uma organização suíça em favor da eutanásia. No seu caso, morreu antes, em abril de 2021, mas deixou para nós essa importante reflexão, que não pode ser relegada.

Na ocasião em que escreveu o livro, publicado em 2002, ele fala da experiência de uma forma bonita, digna e séria:

Entro assim no infinito da pessoa finita. Embarco numa última e decisiva estrada, totalmente diversa, não em direção ao cosmos e nem além de seus confins, mas para o núcleo da realidade” [22].

Fala também do retorno ao Mistério de Deus. Reconhece com dignidade, como cristão, que ao final da vida não estará diante do nada, mas do “tudo que é Deus”. E acrescenta: “Justamente na hora da tristeza e do adeus, que celebramos com gratidão, devemos encontrar a fé e a força para afrontar também o futuro, o nosso futuro, sem ter muito medo da morte” [23].

No epílogo do livro, Hans Küng reflete sobre o seu “último amém”, quando passa a enfrentar a gravidade de sua degeneração macular e o Parkinson, que provocam graves empecilhos ao que ele mais gosta de fazer que é escrever. Sublinha que nesse tempo derradeiro vem brindado com a alegria da leitura livre e prazerosa, da escuta gratuita das músicas que o apetecem e do encontro com os amigos.

Revela sua emoção ao poder contemplar o que há de belo e maravilhoso ao seu redor. Reitera a consciência de que ele é sujeito da complexa decisão de quando e como morrer é algo que diz respeito à sua responsabilidade. E confirma com serenidade que no horizonte de sua vida estará entregue nas misericordiosas mãos de Deus [24].

Fui muito tocado pelo filme franco canadense, dirigido por Denys Arcand, “As Invasões Bárbaras”, onde esse argumento vem abordado de forma simplesmente maravilhosa.

Penso que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da alegria. Viva a Vida!

Para concluir, partilho essa linda oração de um mestre tibetano que era objeto da meditação diária de Rita Lee. O seu nome: “A grande invocação”:

Do ponto de Luz na mente de Deus, que flutua Luz à mente

dos homens, que a Luz desça à Terra.

Do ponto de Amor no coração de Deus, que flua Amor

ao coração dos homens, que Cristo retorne à Terra.

Do centro onde a vontade de Deus é conhecida, que o

Propósito guie as pequenas vontades dos homens, o Propósito

que os mestres conhecem e servem.

Do centro a que chamamos a raça dos homens, que

se realize o Plano de Amor e de Luz e feche a porta onde

se encontra o mal.

Que a Luz e o Amor e o Poder restabeleçam o Plano Divino

sobre a Terra".

Fonte: Ihu unisinos, com vários links.