“Still: A História de Michael J. Fox” revisita de forma exímia a carreira fulgurante em Hollywood, o choque do Parkinson aos 29 anos e o seu quotidiano hoje, aos 61. Tudo isto com uma edição eletrizante — como sempre foi a sua imagem
É notável o que Davis Guggenheim logrou em “Still: A História de Michael J. Fox”. O realizador transformou uma história triste, de frustração, a roçar o desesperante, num documentário leve que se vê como um “feel good movie” à moda dos anos 1980 — e isto, ao que parece, sem faltar à verdade. É preciso recuar no tempo e recordar como a popularidade de Michael J. Fox explodiu para níveis estratosféricos com “Regresso ao Futuro”, em 1985. E quando, quase dois meses depois, “Lobijovem” chegou às salas de cinema, as bilheteiras ainda continuavam dominadas pelo filme de Robert Zemeckis. Catapultado pela fama entretanto adquirida pelo seu protagonista, “Lobijovem” subiu de imediato ao segundo lugar na tabela do box office, atrás de “Regresso ao Futuro”.
Nos anos seguintes, a popularidade do pequeno grande ator manteve-se nos píncaros. “Regresso ao Futuro III” — a sequela final — saiu em 1990. A década seguinte ficaria marcada por uma série de escolhas infelizes de papéis e de filmes que não deixaram lastro. Até que, em 1998, entretanto regressado ao pequeno ecrã, em “Spin City” (passou na RTP2), Michael J. Fox anunciou ao mundo que sofria de Parkinson e que a doença neurológica lhe fora diagnosticada ainda em 1991, aos 29 anos.
Disponível na Apple TV+, o documentário “Still: A História de Michael J. Fox” aborda o quotidiano do ator — como ele lida com a doença, com a perspetiva de não haver cura e de que o hoje, por muito mau que seja, será sempre melhor do que o amanhã — ao mesmo tempo que mistura cenas de filmes e séries em que entrou com cenas novas (filmadas com o uso de duplos) para recria a sua vida.
É um retrato original e inventivo que reconstrói momentos pessoais recorrendo a um vasto arquivo fílmico. É, nesse aspeto, um verdadeiro tratado de edição, fruto do génio criativo de Michael Harte, responsável pela montagem. O processo, engenhoso, tem entre outros efeitos o de revisitar a filmografia de Michael J. Fox, deslizando de forma imaculada entre o papel que o impulsionou em Hollywood — Alex Keaton, em tudo “Quem Sai aos Seus” —, os filmes que o tornaram uma estrela mundial e alguns que se seguiram, como “Bright Lights, Big City” (“As Mil Luzes de Nova Iorque”), sem nunca deixar de fora as pequenas participações em séries sem história que marcaram o seu período inicial.
É pela edição que o documentário de Davis Guggenheim (autor de “Uma Verdade Inconveniente”) se distingue, é o que o torna um documentário ímpar. À edição das imagens junta-se a narração divertida de Michael J. Fox, ainda que a voz off seja recauchutada dos áudios dos vários livros autobiográficos que publicou, e que sempre fez questão de narrar.
Quando aparece em primeiro plano, a falar para a câmara, em discurso direto, respondendo às questões que Davis Guggenheim lhe coloca, a voz de Fox está mais frágil — também ele. Treme muito. Não consegue ficar quieto. Às vezes, pede uma pausa até que os comprimidos atuem — e conta como, quando está nessa exata situação, se alguém lhe perguntar se está tudo bem, responde que está à espera de apanhar o autocarro.
Porque é que Michael J. Fox haveria de se sujeitar a isso? O próprio responde, em notas de produção disponibilizadas pela Apple+: “Eu estava em Santa Bárbara com a minha família quando o Davis telefonou. Disse que tinha lido os meus livros e que gostava da forma como conto a minha história. Começámos a discutir a hipótese de fazer um filme. Parecia que ia ser muito simples. Eu não teria de gravar muitos diálogos por já existirem nos audiolivros. Ele poderia utilizar algumas imagens de arquivo, e outros sons, e teria o seu filme. Mas, na verdade, não foi assim tão simples.”
Davis Guggenheim, presente nessa conversa, acrescenta: “A minha ideia original é que não teríamos ninguém a falar para a câmara. Mas decidi que me sentaria com o Michael, só para experimentar. Só para efeitos de pesquisa, foi o que eu pensei. Mas acabámos por nos encontrar seis ou sete vezes ao longo de seis meses. Nunca levei uma lista de perguntas. O que se vê é apenas uma conversa entre duas pessoas. E essas entrevistas tornaram-se o coração e a alma do filme.”
O documentário mostra como Michael J. Fox filmou “Regresso ao Futuro” de noite depois de filmar cenas de “Quem Sai Aos Seus” durante o dia. Quando terminava de filmar as cenas para a série, um motorista levava-o até ao set do filme, onde a rodagem seguiria noite adentro. Quando terminavam, o mesmo motorista levava-o a casa para dormir três a quatro horas. Um outro motorista, a quem ele dera uma cópia da chave, entrava, preparava café e garantia que o ator acordasse a horas — e um novo ciclo começava.
O filme revela também os truques que Michael J. Fox aprendeu para esconder os tremores perante as câmaras na década de 90. Para dar uma aparência de normalidade, muitas vezes segurava uma caneta ou adereço na mão esquerda, ou tapava-a com o casaco. E geria o tempo de filmagem com o tempo que os comprimidos demoravam a fazer efeito. O facto de ter sentido necessidade de disfarçar a doença tantos anos depois do diagnóstico, de nunca ter parado de trabalhar — e de como afetou a sua carreira, pela escolha dos papéis e capacidade de representar — é, visto agora em retrospetiva, um pouco penoso. A certa altura, Michael J. Fox deixa sair um desabafo: “Esta doença é um castigo cósmico por todo o sucesso que tive.” Ainda assim, fica a garantia: deste documentário ninguém sairá abatido. Michael J. Fox não deixa. Fonte: Expresso pt.