Jovens de 10 e 7
anos têm prescrição médica para receber óleo rico em canabidiol,
substância presente na maconha (cannabis sativa). Família venceu
batalha judicial para plantar em casa.
12/07/2020 - “Eu
posso dizer que os meus meninos são uma criança antes e [outra]
depois da cannabis”. A frase da mãe de dois garotos, de 10 e 7
anos, diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA),
acompanha a descrição do desenvolvimento dos filhos – com melhora
no humor, na qualidade do sono e da interação – a partir do
tratamento com óleo rico em canabidiol (CBD), elemento não
psicoativo da cannabis sativa.
A mulher e o marido
moram em Campinas (SP) e obtiveram, com apoio da Defensoria Pública,
permissão judicial para cultivar maconha em casa unicamente para
produzir o óleo prescrito para tratamento dos filhos. A família
pediu para não ser identificada.
As crianças
começaram o tratamento com o óleo de cannabis em abril de 2019. A
mãe afirma que ele trouxe resultado que os medicamentos tradicionais
nunca alcançaram. No entanto, o alto custo do óleo de cannabis
importado (R$ 2,5 mil pelo frasco de 30 ml) e a oscilação na
entrega da única associação com permissão para produzir o óleo
no Brasil podiam prejudicar o desenvolvimento.
Por isso, a família
procurou a Defensoria Pública em maio do ano passado para começar o
processo que resultou no habeas corpus concedido pelo Tribunal de
Justiça do Estado (TJ-SP) em 16 de junho deste ano. A vitória só
veio com recurso em segunda instância, após rejeição na primeira
decisão.
“A cannabis não é
cura para o autismo, ninguém está falando em cura, mas ela ajudou
muito”, pondera a mãe. As duas crianças tomavam, há anos,
medicamentos psicotrópicos (que atuam no sistema nervoso central e
modificam percepções), anticonvulsivos e suplementos para dormir.
Até hoje, ainda fazem uso de parte dos remédios, mas com redução
drástica.
Médico psiquiatra e
professor da PUC-Campinas, Osmar Henrique Della Torre afirma que o
tratamento com o óleo a base de cannabis é promissor e apresenta
melhorias aos pacientes. Ele pondera que ainda há necessidade de
mais estudos para analisar os efeitos dos canabinoides sobre os
transtornos mentais (leia mais da análise ao fim da matéria).
Para a família de
Campinas, o tratamento se tornou um aliado que aumentou, segundo a
mãe, a felicidade e capacidade de sociabilidade das crianças.
Luta diária para
criar os filhos
A mulher está
desempregada desde 2016, ano em que a empresa onde ela trabalhava
fechou. O cuidado que as duas crianças autistas exige é de tempo
integral, e ela se viu na necessidade de focar os esforços apenas
nelas. Com o marido trabalhando fora o dia todo, o custo de manter
uma cuidadora seria inviável.
Os irmãos têm
comportamentos totalmente diferenças. O mais velho possui autismo
nível 3, o grau mais severo. Ele tem hipersensibilidade auditiva,
não fala, tem significativo isolamento social e comportamentos
autolesivos, com mordidas nas mãos em momentos de excitabilidade e
frustrações.
O mais novo, ao
contrário, é mais bagunceiro, gosta de se comunicar e, segundo a
avaliação psicológica do Centro de Atendimento Multidisciplinar
(CAM) da Defensoria Pública, tem comportamento desafiador e
opositor, com dificuldades em seguir as regras e os limites impostos.
Possui TEA nível 2.
Com características
tão distintas, o contato entre os dois é restrito. Se o mais novo
entra no mesmo cômodo em que o mais velho está, este logo procura
um lugar mais silencioso e recluso. A atenção, portanto, é
constante.
Com os tratamentos
tradicionais, a mãe conta que as crianças eram mais reclusas e
antissociais. “Depois do óleo melhorou muito a qualidade do sono,
o humor melhorou muito. Eu acredito, a percepção que a gente tem é
que, com as medicações que eles tomavam, as crianças ficavam muito
dopadas”.
A família não
removeu todos os medicamentos tradicionais do tratamento dos meninos,
mas já houve redução significativa. A mãe das crianças projeto
manter somente o óleo a partir de 2021.
“A gente percebeu
uma criança mais feliz, que dorme bem, começaram a expressar mais
sentimentos. Por exemplo, chorar quando precisa chorar, porque o
choro é importante, tem que chorar mediante a uma frustração. As
crianças riem mais, interagem. A questão de procurar o outro, então
contato visual melhorou muito”, completou.
A criação dos
meninos autistas é um desafio diário que envolve cuidados básicos
de higiene, noites mal dormidas, comunicação difícil, alimentação
restrita e outros aspectos, mesmo com os avanços no desenvolvimento.
“É bastante cansativo, vive o tempo todo para eles, é uma
dedicação integral”.
As duas crianças
possuem seletividade alimentar e não lidam bem com mudanças de
aromas e gostos das comidas. Por isso, um óleo pouco concentrado
pode exigir alta dose. “É impossível dar 20 gotas de uma
medicação para o meu filho. Ele não toma”, conta a mulher.
Outro argumento
usado na ação que pediu a permissão do cultivo foi a diferença de
concentração e dosagem entre uma leva e outra dos óleos comprados.
“Quando eu compro um óleo esse mês, não significa que o óleo do
mês que vem exatamente com a mesma composição, pode ter uma
alternância. Aí a gente tem que fazer uma adequação de doses de
novo”, diz a mulher.
Ausência de
políticas públicas
A mulher afirma que
as dificuldades na criação dos filhos são ampliadas pela falta de
políticas públicas para auxílio às famílias com pessoas
autistas. O governo federal possui o Benefício de Prestação
Continuada/Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/Loas) que
concede um salário mínimo a famílias com portadores de deficiência
ou idosos.
No entanto, o
benefício só é garantido para famílias com renda de ¼ de salário
mínimo per capita. Isso significa que, para conseguir o benefício,
a família dela precisaria tem renda mensal de cerca de R$ 1040.
“Você não tem
suporte para isso [criar filhos autistas], não existe uma politica
voltada para o autismo. A gente mora em Campinas, a 90 quilômetros
de São Paulo, um polo universitário. Imagina para famílias com
menos acesso?”, questiona.
As crianças
frequentam o ensino público de Campinas, mas já passaram por
escolas particulares. A mãe afirma que, das opções, o ensino
público é o que melhor supre a necessidade de atenção e
aprendizado.
Diante das
dificuldades, é com a união das próprias famílias e criação de
redes de apoio que se segue em frente. Foi assim que ela e o marido
descobriram o caminho até a Defensoria Pública.
Segundo ela, uma
família também de Campinas que tem autorização para cultivo de
cannabis desde 2018 ensinou os passos para conseguir. “Também
procurei a Defensoria porque já sabia de um caso de sucesso que
tinha conseguido via Defensoria. [Descobri que] Eles faziam um
trabalho bem amplo para poder fazer o suporte desse processo”,
disse.
“E outra coisa é
o custo zero. No momento não tinha como arcar com o honorário, por
isso procurei a Defensoria", completou. O órgão estadual dá
suporte jurídico a cidadãos que não podem pagar pelo serviço. Em
geral, são atendidas famílias com renda de até três salários
mínimos mensais.
Tratamento promissor
e em estudo, analisa médico
Osmar Henrique Della
Torre, que tem atuação em psiquiatria de infância e é supervisor
na residência médica da Unicamp, explica que ainda não há
consenso sobre a prescrição de óleos ricos em canabinoides para
tratamento do TEA, ainda que algumas pesquisas já mostrem resultados
positivos.
"Não só no
Brasil como em todo o mundo ainda não existe um consenso sobre a
prescrição. Ainda são muitas as controvérsias sobre as
formulações que devemos utilizar. Questionamentos sobre canabidiol
puro, formulações contendo THC [elemento psicoativo da cannabis] e
quais as porcentagens que podemos utilizar sem termos efeitos
colaterais são alguns dos questionamentos levados em conta por
pesquisadores".
O médico completa
que também é necessário entender mais sobre as consequências do
uso a longo prazo.
Um publicação de
outubro de 2019 do BMC Psychiatry, periódico que reúne artigos
sobre transtornos psiquiátricos, apontou que existem três ensaios
clínicos em larga escala e cinco estudos pequenos que avaliaram o
uso de cannabis para autismo, segundo o professor da PUC.
Um destes estudos,
realizado em Israel, avaliou a eficácia da cannabis rica em
canabidiol em 60 crianças. "O estudo constatou que 61% dos
problemas comportamentais entre os participantes foram muito
melhorados, segundo relatos dos pais. Também houve melhora nos
níveis de ansiedade em 39% das crianças e 47% na comunicação",
explicou Della Torre.
Este estudo apontou
como benefício adicional a redução do uso de medicamentos. Das 60
crianças, 24% pararam de tomar medicação e cerca de 30% reduziram
a dosagem ou quantidade.
No entanto, a
pesquisa também apontou a geração de efeitos não buscados. "Esses
efeitos colaterais geralmente incluíam hipervigilância, que levou
ao agravamento das preocupações com o sono (14%), irritabilidade
(9%), perda de apetite (9%) e inquietação (9%)".
O médico e
professor explica que o entendimento científico dos elementos da
maconha, como o tetra-hidrocanabinol (THC), responsável por ações
psicoativas como ansiedade e alucinações, e o canabidiol ampliou o
uso da planta na medicina.
"A maconha
medicinal é cada vez mais usada como tratamento ou tratamento
adjunto com diferentes níveis de eficácia em vários distúrbios
neurológicos (...) como esclerose múltipla, autismo, doença de
Parkinson e Alzheimer".
Cultivo em casa
A mãe dos meninos
conta que a terapeuta deles indicou um médico que prescreve o óleo
de cannabis. Foram quatro meses de acompanhamento até a indicação
para o tratamento. A mulher reafirma a importância de explicar que
todo o tratamento é acompanhado pelo médico e que não há
“amadorismo”.
Ela também defende
que o cultivo domiciliar é regrado. Na ação com obteve o habeas
corpus, a Defensoria Pública argumentou que a família passou por
cursos e palestras sobre o plantio e extração do óleo.
A preocupação dela
é com o preconceito e as denúncias infundadas que já prejudicaram
outras famílias. “Tem família que perdeu tudo [que plantou]".
O médico psiquiatra
e professor da PUC afirma que há dificuldades no cultivo domiciliar.
Uma delas é a possível variação das concentrações de CBD e THC
das plantas. "Felizmente, o potencial de gravidade/morte com o
uso do óleo é baixo", ameniza.
Antes mesmo do
habeas corpus, uma liminar da mesma ação, garantida pelo TJ-SP em
20 de março, já dava permissão para a família cultivar.
Atualmente, eles mantêm cerca de 15 pés ainda pequenos.
Como o tempo entre o
plantio e o uso do óleo chega a oito meses, a mulher estima precisar
de 30 pés para garantir o tratamento por um ano dos dois filhos. O
caçula toma seis gotas diárias, enquanto o mais velho faz uso de
oito.
“A gente consegue
ministrar diluído numa Nutella, num leite, às vezes consegue
colocar na própria comida mesmo, no arroz e feijão, é uma forma de
conseguir ministrar”, explica. Com o habeas corpus, a família de
Campinas tem garantido o direito de cultivo sem a possibilidade de
apreensão das mudas. Fonte: G1 Globo.