17 de junho de 2024 -
Quando médicos e pacientes pensam no apêndice, costuma ser uma
emergência. Nos casos de apendicite, a luta contra o tempo pode
levar à ruptura do apêndice, causando uma peritonite potencialmente
fatal. Assim, apesar de recentes pesquisas sugerirem que os
antibióticos possam ser um tratamento clínico alternativo, a
apendicectomia ainda é a conduta convencional nos casos de
apendicite sem complicações.
Mas e se a remoção do
apêndice pudesse aumentar o risco de doenças gastrointestinais,
como a síndrome do intestino irritável e o câncer colorretal? Isso
é o que sugerem alguns novos dados científicos. E, embora as
pesquisas sejam preliminares e heterogêneas, são o suficiente para
provocar reflexão.
"Se não há razão
para remover o apêndice, então é melhor preservá-lo", disse
a Dra. Heather Smith, Ph.D., professora de anatomia comparativa na
Midwestern University, nos Estados Unidos. A remoção preventiva não
é corroborada pelas evidências, disse a professora.
Para sermos justos,
percorremos um longo caminho desde 1928, quando o Dr. Miles Breuer,
médico americano de origem tcheca, sugeriu que as pessoas com
apêndices infectados deveriam perecer, de modo a remover seu ácido
desoxirribonucleico (DNA) de qualidade inferior do conjunto dos genes
humanos (ele chamou essas pessoas de "não civilizadas" e
"candidatas à extinção"). Darwin, embora menos radical,
acreditava que o apêndice era, na melhor das hipóteses, inútil —
um mero vestígio da modificação da alimentação de nossos
ancestrais de folhas para frutas.
O que sabemos agora é
que o apêndice não é apenas um pedaço problemático de tecido
intestinal destituído de valor. Em vez disso, ele pode atuar como
refúgio para as bactérias intestinais benéficas ao organismo e um
campo de treinamento para o sistema imunitário. Também parece
desempenhar algum papel em várias doenças clínicas, desde a colite
ulcerativa e o câncer colorretal até a doença de Parkinson e o
lúpus eritematoso sistêmico. Mas a verdade nua e crua é que os
cientistas continuam tentando distinguir os casos em que ter um
apêndice é protetor daqueles em que seria melhor não tê-lo.
Uma estrutura
"vermiforme" como proteção intestinal
O apêndice é uma
estreita projeção sem saída (o que significa que sua extremidade
está fechada) que se projeta da parte inicial do intestino grosso.
Nem todos os mamíferos o têm. Foi encontrado em várias espécies
de primatas e roedores, bem como em coelhos, marsupiais vombates
australianos e peixes-boi da Flórida, entre outros (cães e gatos
não o apresentam). Embora o apêndice humano seja vermiforme, disse
a Dra. Heather, essas estruturas anatômicas ocorrem em vários
tamanhos e formas. Alguns são grossos, como os dos castores,
enquanto outros são longos e espiralados, como os dos coelhos.
Estudos de anatomia
comparativa revelaram que o apêndice evoluiu de forma independente
pelo menos 29 vezes ao longo da evolução dos mamíferos. Isso
sugere que ele tenha algum tipo de função adaptativa, disse a Dra.
Heather. Quando cientistas franceses analisaram dados de 258 espécies
de mamíferos, descobriram que aquelas que têm um apêndice vivem
mais do que as que não o têm. Uma possível explicação,
escreveram os pesquisadores, pode estar no papel do apêndice na
prevenção da diarreia.
O estudo realizado em
2023 por esses pesquisadores respaldou essa hipótese. Com base em
registros veterinários de 45 espécies diferentes de primatas
alojados em um zoológico francês, os cientistas comprovaram que os
primatas com apêndices são muito menos propensos a ter diarreia
grave do que os que não têm esse órgão. O apêndice, ao que
parece, pode ser nossa pequena arma contra problemas intestinais.
Para o imunologista Dr.
William Parker, Ph.D., pesquisador visitante da University of North
Carolina at Chapel Hill, esses dados são "o melhor que
poderíamos esperar" em corroboração à ideia de que o
apêndice pode proteger os mamíferos de problemas gastrointestinais.
Um experimento em humanos seria antiético, disse Dr. William. Mas
estudos observacionais oferecem pistas.
Uma pesquisa mostrou
que, em comparação às pessoas com apêndice preservado, adultos
jovens com história de apendicectomia têm mais que o dobro do risco
de ter infecção grave por Salmonella não tifoide, do tipo que
exigiria hospitalização.
"Refúgio"
para bactérias
Estes estudos reforçam
uma teoria que o Dr. William e seus colaboradores elaboraram em 2007:
a de que o apêndice atua como “refúgio” para as bactérias
intestinais benéficas ao organismo.
Pense no cólon como um
tubo largo, disse Dr. William, que pode ser contaminado por um
patógeno como a Salmonella. Segue-se a diarreia, e o tubo é
repetidamente lavado, limpando tudo, inclusive o seu microbioma
intestinal saudável. Felizmente, "você tem esse pequeno
desdobramento desse cano", onde o fluxo líquido não consegue
entrar "porque é muito apertado", disse Dr. William. Os
micróbios intestinais benéficos ao organismo podem sobreviver no
interior do apêndice e repovoar o cólon assim que a diarreia
acabar. Dr. William e seus colaboradores descobriram que o apêndice
humano contém uma espessa camada de bactérias benéficas ao
organismo. "Essas bactérias estavam exatamente onde previmos
que estariam", disse o especialista.
A hipótese do refúgio
poderia explicar por que o microbioma intestinal pode ser diferente
nas pessoas que não têm mais o apêndice. Em um pequeno estudo, as
pessoas que fizeram apendicectomia tinham um microbioma menos
diversificado, com menor quantidade de cepas benéficas, como
Butyricicoccus e Barnesiella, do que as pessoas com apêndices
preservados.
O apêndice
provavelmente também tem uma segunda função, disse a Dra. Heather:
pode servir como um campo de treinamento para o sistema imunitário.
"Diante de um patógeno invasor no intestino, o apêndice ajuda
o sistema gastrointestinal a montar a resposta imunitária",
disse a professora. O apêndice humano é rico em células especiais
conhecidas como células M. Estas atuam como batedores, detectando e
capturando bactérias e vírus invasores e apresentando-os à equipe
de defesa do organismo, como os linfócitos T.
Se o apêndice abriga
bactérias benéficas e aumenta a resposta imunitária, isso pode
explicar sua relação com várias doenças. Segundo um estudo
epidemiológico feito em Taiwan, os pacientes que fizeram
apendicectomia têm um risco 46% maior de apresentar síndrome do
intestino irritável — doença associada a uma pequena quantidade
das bactérias Butyricicoccus. É por isso que os médicos devem
prestar muita atenção às pessoas que tiveram seus apêndices
removidos, monitorando-as quanto a possíveis sinais ou sintomas da
síndrome do intestino irritável, escreveram os autores do estudo.
O mesmo banco de dados
ajudou a descobrir outras conexões entre a apendicectomia e a
doença. Por um lado, havia o diabetes tipo 2: nos três anos após a
cirurgia, pacientes com menos de 30 anos tinham o dobro do risco de
evoluir para este quadro. Depois, houve o lúpus eritematoso
sistêmico: os que fizeram apendicectomia geralmente tinham maior
risco de ter esta doença autoimunitária, e as mulheres foram
particularmente atingidas.
Conexões controversas
A discussão científica
mais acalorada é sobre a relação entre o apêndice e quadros
clínicos, como a doença de Parkinson, a colite ulcerativa e o
câncer colorretal. Um pequeno estudo de 2019 mostrou que a
apendicectomia pode melhorar os sinais e sintomas de certas formas de
colite ulcerativa que não respondem aos tratamentos clínicos
convencionais. Um terço dos pacientes melhorou após a remoção do
apêndice e 17% se recuperaram inteiramente.
Por quê? Segundo Dr.
William, a apendicectomia pode funcionar para a colite ulcerativa
porque é "uma maneira de suprimir o sistema imunitário,
especialmente nas partes distais do intestino". Uma metanálise
de 2023 descobriu que as pessoas que tiveram o apêndice removido
antes de terem o diagnóstico de colite ulcerativa tinham menos
propensão a precisar de uma colectomia mais tarde.
Esse procedimento pode
ter um efeito colateral grave, no entanto: o câncer colorretal.
Cientistas franceses descobriram que a remoção do apêndice pode
reduzir o número de certas células imunitárias chamadas células T
CD3+ e CD8+, enfraquecendo a vigilância imunitária. Como resultado,
as células tumorais podem escapar da detecção.
No entanto, as relações
entre a remoção do apêndice e o câncer estão longe de serem
claras. Uma recente metanálise descobriu que, embora as pessoas que
haviam realizado uma apendicectomia geralmente tivessem maior risco
de câncer colorretal, para os europeus esses efeitos foram
desprezíveis. Na verdade, a remoção do apêndice protegeu as
mulheres europeias dessa forma específica de câncer. Para o Dr.
William, a heterogeneidade desses resultados pode resultar do fato de
que os tratamentos e as populações variam amplamente. A questão
"pode depender de fatores sociais e médicos complexos",
disse Dr. William.
As coisas também
parecem complicadas com a doença de Parkinson — outro quadro
ligado ao apêndice. Um grande estudo epidemiológico mostrou que a
apendicectomia está associada a menor risco de doença de Parkinson
ou à doença de Parkinson tardia. Também descobriu que o apêndice
normal contém α-sinucleína, uma proteína que pode se acumular no
cérebro e contribuir para o desenvolvimento do mal de Parkinson.
"Embora a α-sinucleína seja tóxica quando no cérebro, parece
ser bastante normal quando presente no apêndice", disse o
médico Dr. Luis Vitetta, Ph.D., epidemiologista clínico da
University of Sydney, na Austrália. No entanto, nem todos os estudos
descobriram que a remoção do apêndice reduz o risco de Parkinson.
Na verdade, alguns mostram resultados opostos.
Como os médicos devem
encarar o apêndice?
Mesmo com esses
mistérios e contradições, disse o Dr. Luis, um apêndice saudável
em um corpo saudável parece ser protetor. É por isso que, afirmou o
médico, quando alguém é diagnosticado com apendicite, uma
avaliação rigorosa é essencial antes da cirurgia ser realizada.
"Talvez um
antibiótico possa realmente ajudar a reverter o quadro", disse
o Dr. Luis. Um estudo de 2020 publicado no periódico The New England
Journal of Medicine mostrou que os antibióticos podem de fato ser
uma boa alternativa à cirurgia para o tratamento da apendicite. "Não
queremos necessariamente remover um apêndice que possa ser
benéfico", disse a Dra. Heather.
As muitas relações
entre o apêndice e várias doenças significam que os médicos devem
estar mais vigilantes ao tratar pacientes que tiveram esse órgão
removido, concluiu o Dr. William. "Quando um paciente perde seu
apêndice, dependendo do ambiente pode haver efeitos infecciosos e
oncológicos. Então ele podem precisar fazer exames com mais
frequência", disse Dr. William. Seria o caso do monitoramento
da síndrome do intestino irritável e do câncer colorretal.
Além disso, o Dr.
William acredita que a pesquisa sobre o apêndice coloca ainda mais
ênfase na necessidade de proteger o microbioma intestinal — como
tomar probióticos junto a tratamento com antibióticos orais. E
embora ainda estejamos muito longe de entender como exatamente essa
estrutura vermiforme reage com várias doenças, uma coisa parece
bastante certa: o apêndice não é inútil. "Se Darwin tivesse
as informações que temos, ele não teria tirado a conclusão que
tirou", concluiu o Dr. William. Fonte: Medscape.