A australiana Natasha
Clark, 51A australiana Natasha Clark, 51 | Arquivo pessoal
01/07/24 - Já faz
cerca de 17 anos que Natasha Clark, 51, vive com Parkinson.
Australiana, ela acumula muitas experiências negativas por causa da
doença. Três anos atrás, por exemplo, deixou seu trabalho como
cuidadora de idosas. Quadros depressivos também a acompanham em meio
aos sintomas do Parkinson.
Mas, por um momento,
Natasha teve o vislumbre de uma vida basicamente livre do problema
neurológico. Em 2016, ela recebeu um implante de estimulação
cerebral profunda. "Depois de fazer a operação, você acorda
se sentindo incrível e pensa que pode fazer qualquer coisa",
diz ela à Folha de S.Paulo.
A tecnologia consiste
em um equipamento implantado no corpo que, por meio de descarga
elétrica, regula a atividade cerebral e, dessa forma, diminui ou
mesmo cessa sintomas de doenças neurológicas e psiquiátricas. O
local onde o aparelho é inserido varia a depender da doença: no
caso do Parkinson, normalmente é no tálamo, na parte central do
cérebro.
Logo depois da
cirurgia, Natasha percebeu que algo estava diferente. "Comecei a
sentir uma perda de identidade. Senti que tinha perdido uma parte de
mim; não me sentia a mesma pessoa que era antes."
E ela não é a única.
Frederic Gilbert,
professor associado da Escola de Humanidades da Universidade da
Tasmânia, na Austrália, tem um interesse especial por casos como o
de Natasha e estuda o tema há certo tempo -seu primeiro artigo sobre
o assunto foi publicado há cerca de 12 anos.
"Existem casos
publicados de pacientes que passam pelo implante e reportam mudança
de personalidade, despersonalização", diz Gilbert. "Eles
param de se reconhecer depois da estimulação."
Grande parte dessas
pesquisas envolve entrevistas com pacientes submetidos à cirurgia de
implante do equipamento que relatam as alterações de personalidade
ou comportamento. Em 2017, por exemplo, o professor publicou um
artigo em colaboração com outros cientistas que documentou 17
desses casos.
Outra pesquisa mais
recente, de 2023, e que não é assinada por Gilbert, entrevistou 23
pesquisadores envolvidos com o tema a fim de entender se estavam
cientes desse tipo de relato. O estudo concluiu que grande parte
desses especialistas estavam a par desse efeito colateral indesejado,
mas também afirmaram que a terapia era eficaz no controle de doenças
como Parkinson.
O ponto também é
mencionado por Gilbert. "A narrativa geral é de que funciona
muito bem e é bastante espetacular", afirma, em referência a
como é possível ver, em determinados casos e de forma imediata, que
os sintomas cessam completamente após a calibragem da descarga
elétrica proporcionada pelo aparelho. A expectativa de vida com esse
tratamento também aumenta.
Mas o professor ainda
tenta entender por que ocorrem efeitos adversos como no caso de
Natasha. E a primeira dificuldade é compreender se realmente a
estimulação cerebral profunda acarreta tais desordens
comportamentais, ou seja, se existe uma relação de causa e efeito.
Algumas hipóteses
indicam o contrário. Uma delas é de que o próprio Parkinson e
outros problemas de saúde parecidos levam a isso. "O que pode
causar [a mudança de personalidade] é o fato de que doenças como o
Parkinson são neurodegenerativas, o que significa que o cérebro do
paciente vai se depreciando lentamente", explica Gilbert.
Nesse caso, os sintomas
decorrentes do Parkinson, como tremores constantes, poderiam mascarar
os distúrbios de personalidade e comportamento. Quando tais sintomas
comuns da doença são interrompidos pela estimulação cerebral
profunda, as mudanças de identidade ficariam evidentes.
Outra possibilidade é
chamada de fardo da normalidade. O conceito é uma hipótese de que
os pacientes que vivem com doenças crônicas por tantos anos, quando
contam um tratamento eficaz, como o da estimulação profunda
cerebral, voltam para a "normalidade". Contudo, esses
pacientes não conseguem ter uma resposta tão positiva, gerando
potencialmente as desordens comportamentais e de personalidade.
A hipótese já é
documentada também para outras situações que não envolvem a
estimulação cerebral profunda. Gilbert menciona casos de pacientes
com epilepsia que, após serem submetidos a uma cirurgia de retirada
de parte do cérebro, registram momentos de má adaptação e
dificuldades de autorreconhecimento quando se veem sem os sintomas
dessa doença.
No entanto, ainda não
existe uma resposta clara de por que isso acontece após o implante.
O tema preocupa sobretudo porque alguns pacientes não param de
sentir esses distúrbios. Natasha, por exemplo, afirma que até hoje
tem dificuldades com os efeitos colaterais que apareceram depois de
sua cirurgia. Ela conta com o acompanhamento de um terapeuta e espera
encontrar, junto com seu neurologista, a forma ideal de estimulação
elétrica dispersada pelo equipamento de modo a evitar os distúrbios
que sente -por enquanto, essas são só esperanças.
Outra tecnologia que
visa o tratamento de doenças neurológicas também reúne casos
parecidos. É a estimulação magnética transcraniana, que abrange o
direcionamento de estímulos magnéticos para o tratamento de
problemas como enxaqueca. Esse método é minimamente invasivo, o que
difere da estimulação profunda, que envolve uma cirurgia complexa
para realizar a inserção do equipamento.
João Brainer,
neurologista e professor adjunto da Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo), explica que o cérebro cria um próprio campo
eletromagnético. Com a estimulação transcraniana, é possível
estimular e reorientar esse campo original, gerando efeitos positivos
no paciente.
Porém alguns efeitos
colaterais indesejados podem surgir. A maior parte deles são a perda
de vontade de fazer atividades cotidianas, desinibição, que envolve
a mudança de comportamento para diferentes situações, ou
alterações de humor, como quando a pessoa desenvolve um quadro
depressivo. Mudança de personalidade, no entanto, não são bem
documentadas para esse método, afirma Brainer.
Uma das hipóteses que
podem explicar esses eventos adversos é a modulação inadequada da
estimulação. Se não estiver articulada de maneira adequada e
adaptada ao paciente, o tratamento pode afetar o cérebro de
diferentes maneiras e levar a esses problemas de comportamento.
Por isso, tais efeitos
colaterais devem ser considerados quando se pensa em recomendar essa
terapia a um paciente. "É preciso colocar isso numa balança na
tomada de decisão se vale realmente a pena fazer o procedimento",
defende o neurologista.
Até porque, assim como
no caso da estimulação cerebral profunda, tem casos que são
reversíveis, mas outros não. "Alguns cérebros conseguem se
recuperar da injúria que sofreram, mas outros não recuperam tanto",
diz Brainer. Fonte: tnh1.