Elas não são causadas
por vírus ou bactérias. É uma proteína que “entorta” do jeito
errado e consegue induzir outras iguais a também se dobrarem assim,
causando perda de memória, alterações de comportamento e de
movimentos
23/10/2025 - As doenças
priônicas são raras. Mas são devastadoras. Não têm cura. Depois
do diagnóstico, a evolução costuma ser rápida, em meses.
Essas doenças afetam o
cérebro. A mais conhecida nos humanos é a doença de
Creutzfeldt-Jakob (DCJ). Ela causa perda de memória, alterações de
comportamento e de movimentos. A progressão é acelerada e leva ao
óbito.
Há um ponto chave: as
doenças priônicas têm caráter infeccioso muito particular. O
agente não é um vírus nem uma bactéria. É uma proteína que
“entorta” do jeito errado e consegue induzir outras iguais a
também se dobrarem do jeito errado. Por isso, a vigilância é
essencial. Na saúde pública e na economia.
Você talvez se lembre
do “mal da vaca louca”, a encefalopatia espongiforme bovina.
Quando um caso aparece, países importadores podem suspender compras
de carne por precaução. Isso aconteceu com o Brasil em 2023: as
exportações para a China foram temporariamente interrompidas após
um caso atípico confirmado. O impacto foi imediato no comércio.
O que acontece no
cérebro
Vamos simplificar o
mecanismo. Todos nós temos a proteína priônica normal (PrPC). Em
condições que ainda estamos desvendando, parte dela muda de forma e
vira PrPSc, a forma “errada”. Essa forma atua como molde. Encosta
na proteína normal e a faz copiar o mesmo erro. É um efeito dominó
molecular.
Com o tempo, esses
“blocos” mal dobrados se juntam e formam agregados. Eles são
rígidos, parecidos com fibras. No tecido, vemos lesões
microscópicas que lembram uma esponja. O resultado é perda de
neurônios e de funções cerebrais.
Outro problema: essas
proteínas doentes resistem a desinfetantes e métodos comuns de
esterilização. Por isso, hospitais seguem protocolos específicos
para reduzir o risco em materiais que tiveram contato com tecidos de
alto risco. É cuidado redobrado e baseado em evidências.
Diagnóstico ainda é
um desafio — mas há avanços
Desde 2005, quando a
vigilância nacional iniciou o controle dos casos da doença
Creutzfeldt-Jakob em humanos, foram registrados 1.576 casos
suspeitos. Pelas estatísticas mundiais, este número deveria ser de
3.200, ou seja, pode ser uma subnotificação. E essa lacuna
diagnóstica se deveu por muito tempo, entre outros fatores, à
ausência de centros de referência suficientes com domínio da
tecnologia para o diagnóstico dessas doenças no país.
Por muito tempo, o
diagnóstico definitivo era neuropatológico, ou seja, após o
falecimento do paciente analisava-se tecido cerebral. Mas
precisávamos de ferramentas confiáveis em vida. Durante anos, nos
guiamos por sinais clínicos, ressonância, eletroencefalograma e
marcadores como a proteína 14-3-3 no líquor. Eles ajudavam, mas não
eram específicas o suficiente.
Nos últimos anos, um
teste mudou o jogo: o RT-QuIC (da sigla em inglês, Conversão
Induzida por Agitação em Tempo Real). Ele detecta a presença do
príon anormal em amostras como o líquor. É sensível, específico
e vem sendo incorporado em critérios internacionais. Hoje, por
exemplo, o CDC dos EUA considera um RT-QuIC positivo como critério
para classificar um caso como “provável” da doença de
Creutzfeldt-Jakob.
No Brasil, demos passos
importantes para implementar o teste e criar um centro de referência.
Há alguns anos, publicamos um artigo em parceria com cientistas do
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, no qual
abordamos a disponibilidade ainda insuficiente desses testes em
países em desenvolvimento, e exploramos os resultados de um teste
piloto que fizemos.
No estudo, relatamos o
primeiro uso piloto do IQ-CSF em uma pequena coorte de pacientes
brasileiros com possível ou provável doença de Creutzfeldt-Jakob.
Os testes foram realizados sem acesso aos dados clínicos.
Oito pacientes
apresentaram-se à nossa equipe com demência rapidamente progressiva
e sinais neurológicos típicos da doença. Utilizamos amostras de
sete pacientes com outras condições neurológicas como controles
negativos. Cinco dos sete casos suspeitos tiveram testes positivos;
dois apresentaram resultados inconclusivos. Entre os controles, houve
um falso-positivo.
Os resultados desse
estudo piloto ilustraram a viabilidade de realizar testes de líquor
para Creutzfeldt-Jakob também em centros brasileiros e ressaltou a
importância da colaboração interinstitucional para alcançar maior
precisão diagnóstica da doença no Brasil e na América Latina.
De lá para cá, muitos
avanços. Mas apesar das conquistas, nossas diretrizes oficiais para
notificação e investigação, publicadas em 2018, não citam o
RT-QuIC nos critérios. Isso precisa ser atualizado para alinharmos
vigilância e assistência com o estado da arte.
Atualmente, atuamos
para oferecer RT-QuIC com qualidade e rapidez. Nosso laboratório NB3
para o diagnóstico e desenvolvimento de estratégias terapêuticas
para doenças infecciosas, localizado no Instituto de Bioquímica
Médica Leopoldo de Meis da UFRJ, é o único na América Latina que
realiza rotineiramente esse ensaio de ponta. E estamos negociando uma
parceria com um laboratório de análises de líquor para formalizar
o fluxo e viabilizar o custeio de insumos, pois até agora são
financiados exclusivamente por nós.
Acreditamos na
importância de oferecer esse teste para todos os casos suspeitos,
pois encurta o caminho entre clínica e a confirmação laboratorial,
além de fortalecer a vigilância nacional.
E o que mais
investigamos?
O nosso grupo também
trabalha em outros dois eixos além do diagnóstico: entender os
mecanismos moleculares dessas doenças priônicas e terapia. Buscamos
moléculas capazes de impedir ou reverter a agregação da proteína
priônica.
Exploramos compostos de
origem natural e biomoléculas inspiradas em mecanismos do próprio
organismo. A ideia é simples: se a doença nasce de uma cadeia de
“más influências” moleculares, precisamos de agentes que
interrompam a conversa tóxica entre as proteínas.
Recentemente,
publicamos um outro artigo que investigou o potencial do uso da
Moringa oleífera, também conhecida popularmente pelos nomes de
acácia-branca, árvore-rabanete-de-cavalo e quiabo-de-quina. É uma
planta que tem potencial para impedir ou reverter a formação dessas
proteínas anormais. Analisamos um extrato das folhas da planta e
descobrimos dois compostos principais: ácido clorogênico, produzido
também pelas plantas de café e batata, e ácido neoclorogênico.
Essas substâncias
mostraram duas ações importantes nos testes que realizamos em
laboratório: a Moringa oleífera impediu que a proteína normal se
transformasse na forma patogênica, reduzindo a formação de
agregados tóxicos. Além disso, o extrato da planta conseguiu
desfazer parcialmente os agregados já formados, algo especialmente
promissor para o desenvolvimento de terapias.
Os resultados deste
estudo, que foi publicado no periódico ACS Omega, indicam que a
Moringa oleifera pode ser uma fonte promissora de novos medicamentos
contra doenças priônicas e outras condições relacionadas ao
acúmulo de proteínas anormais no cérebro. Ainda serão necessários
estudos em animais e testes clínicos para confirmar sua eficácia e
segurança, mas o potencial terapêutico é significativo.
Brasil sedia encontro
global
Em 2025, o principal
congresso internacional sobre príons - realizado anualmente há duas
décadas — acontecerá pela primeira vez abaixo da linha do
Equador.
Será em Búzios, no
Rio de Janeiro, de 3 a 7 de novembro de 2025.Prion 2025 reunirá
especialistas de vários países como Itália, Estados Unidos, Chile,
entre outros para discutir como podemos avançar das pesquisas que
vão do laboratório ao leito do paciente: mecanismos moleculares,
modelos animais, terapias em desenvolvimento e estratégias de
diagnóstico.
Este ano, o encontro
traz um diferencial importante. Receberemos a reunião do
International CJD Surveillance Network (ICSN). Representantes de
vigilância de diversos países apresentarão dados, debaterão
respostas frente a novas formas de doenças priônicas e procuraremos
alinhar caminhos para intervenções terapêuticas. É ciência,
saúde pública e gestão governamental conversando na mesma mesa.
Outro eixo fundamental
será aproximar a ciência da sociedade. Teremos uma atividade
organizada com associações de apoio a pacientes e familiares: o
dcjBRASIL, a Associação Portuguesa de Doenças Priónicas e a CJD
International Support Alliance (CJDISA), rede que conecta
organizações de vários países. Esse diálogo é vital. Ele acolhe
famílias, combate a desinformação e ajuda a orientar políticas
públicas.
E agora?
As doenças priônicas
nos desafiam. Elas nos forçam a inovar no diagnóstico, a pensar
terapias que atuem sobre a forma e a conversa das proteínas, e a
manter vigilância constante. Isso exige investimento, colaboração
internacional e atualização de diretrizes nacionais.
Além disso, nos
últimos dez anos, pesquisas em todo o mundo revelaram que mecanismos
semelhantes aos das doenças priônicas também estão presentes em
diversas condições neurodegenerativas — como a doença de
Alzheimer, o Parkinson e a Esclerose Amiotrófica Lateral — e até
mesmo em certos tipos de câncer associados à mutação da proteína
p53. Nesses casos, observa-se um comportamento “príon-like”:
formas mal dobradas dessas proteínas atuam como sementes que induzem
outras cópias normais a adotar a mesma conformação anômala,
propagando a disfunção de maneira autocatalítica dentro das
células e entre tecidos.
Essas descobertas
redefiniram nossa compreensão de como proteínas instáveis podem
contribuir para a progressão de doenças complexas, tanto nas
doenças neurodegenerativas como oncológicas. Alguns dos estudos
mais recentes sobre esses mecanismos de propagação molecular —
incluindo estratégias terapêuticas para interromper essa “cadeia
de infecção conformacional” — serão debatidos em profundidade
durante o congresso Prion 2025, que ocorrerá em Búzios.
A ciência avança
quando aproximamos o laboratório da vida real. É isso que queremos
fazer aqui no Brasil. Em Búzios, em novembro de 2025, o mundo das
doenças priônicas estará reunido e esperamos mais avanços.
Todos os avanços
avanços acima descritos foram viabilizados pelo aporte financeiro de
agências brasileiras de fomento como Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação Carlos
Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj). E a publicação deste artigo contou com financiamento do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Biologia Estrutural e
Bioimagem (Inbeb/CNPq).
Tuane Vieira recebe
financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Jerson Lima Silva
recebe financiamento da Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) Fonte: Globo.