Opção de escolher
como e quando morrer tem atraído mais pessoas aos 14 países onde a
prática é legalizada. Conheça histórias de quem decidiu encerrar
a própria vida
Dos 14 países onde a
morte voluntária assistida (MVA) é legaliza- da, oito deles estão
na Europa: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Holanda,
Luxemburgo, Portugal e Suíça. Dois são da América do Norte (EUA e
Canadá), dois da América do Sul (Equador e Colômbia) e dois da
Oceania (Austrália e Nova Zelândia) — Foto: Gustavo Magalhães
30/03/2025 - Um ferro
de passar roupa, em alta temperatura, encostado no rosto. É assim
que Carolina Arruda, de 27 anos, descreve a dor que sente. Algumas
crises são tão fortes que ela chega a desmaiar. “É como se o
cérebro desligasse o corpo para protegê-lo do sofrimento”, diz. A
estudante de veterinária tinha 15 anos quando começou a sentir os
primeiros “choques elétricos”. Achou que fosse sequela da dengue
e não deu importância. Mas, a dor, antes esporádica, se tornou
frequente. Cinco anos e 27 médicos depois, veio o diagnóstico:
neuralgia do trigêmeo. Os neurologistas costumam se referir a essa
condição, que afeta um nervo da face, como “a pior dor do mundo”.
Desde 2018, Carolina já
tentou incontáveis tratamentos. Foram seis cirurgias – a última,
em agosto, para implantar uma bomba de morfina no cérebro. O
procedimento não deu o resultado esperado. De uns anos para cá, ela
passou a cogitar o suicídio assistido na Suíça, um dos 14 países
do mundo onde a morte assistida é legalizada. Já conseguiu
arrecadar R$ 145 mil, via crowdfunding, para custear o processo. “Não
espero ficar curada. Perdi essa ilusão”, diz Carolina, casada há
três anos e mãe de uma menina de dez. “Na veterinária, quando
sacrificamos um animal, não é por maldade, é por misericórdia. É
para aliviar o sofrimento dele”, explica.
A vontade de Carolina
de colocar um ponto final na própria vida foi alcançada, há alguns
meses, por outro brasileiro, o poeta e filósofo Antonio Cicero, de
79 anos. No dia 18 de outubro de 2024, Cicero viajou para Paris pela
última vez com seu marido, o figurinista Marcelo Pies, de 62. Na
capital francesa, assistiram a uma exposição no Centro Georges
Pompidou, visitaram a igreja Sainte-Chapelle e jantaram no
restaurante La Coupole. Dois dias depois, seguiram para Zurique, na
Suíça. Lá, o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL)
cumpriu seu último desejo: uma morte digna e indolor. “Minha vida
se tornou insuportável”, confessou, em carta aos amigos.
Antonio Cicero tomou a
decisão em julho de 2023, depois de receber o diagnóstico de
Alzheimer. Em pouco tempo, a doença neurodegenerativa se tornou
implacável: o impediu de escrever versos – como “Tolice é viver
a vida assim sem aventura”, da canção O Último Romântico, de
Lulu Santos – e de redigir ensaios. Não bastasse, já não
lembrava mais o que tinha feito na véspera, nem reconhecia quem
encontrava pelas ruas. Pior: não conseguia mais ler, uma de suas
paixões. Na terça, dia 22, telefonou para a irmã, a cantora e
compositora Marina Lima, para dar adeus. “Espero ter vivido com
dignidade e espero morrer com dignidade”, concluiu, em sua carta de
despedida. Morreu no dia 23 de outubro de 2024.
A organização que
ajuda pessoas a morrer
A instituição onde
Antonio Cicero morreu se chama Dignitas – “Dignidade”, em
latim. Foi fundada em 1998 pelo advogado suíço Ludwig Minelli e
acolhe pacientes do mundo inteiro com doenças incuráveis ou
incapacitação irreversível. Até 2022, ajudou 3,6 mil pacientes a
morrer. Desses, 1,4 mil são alemães, 527 britânicos e 498
franceses, entre outras nacionalidades. Três eram brasileiros.
Outro na lista de
pacientes famosos foi o ex-jogador de futebol americano Brian Ameche.
“Prefiro morrer de pé a viver de joelhos”, alegou, ao
descobrir-se com Alzheimer, em 2019. Três anos antes, em 2016, sua
esposa, Amy Bloom, começou a notar os primeiros sintomas: fazia a
mesma pergunta repetidas vezes, não conseguia memorizar datas e
esquecia os nomes das netas. Sua história está contada no livro In
Love – A Memoir of Love and Loss (2022), escrito por Bloom. “Sinto
sua falta, mas não me arrependo de tê-lo ajudado a fazer o que ele
achava ser o melhor para ele”, ela garante. “No lugar dele, teria
tomado a mesma decisão”. Nos EUA, 11 dos 50 estados, como
Califórnia e Washington, aprovam o suicídio assistido. Mas, como é
exigida uma expectativa de vida menor que seis meses, o casal teve
que viajar para a Suíça, em janeiro de 2020.
Quem passou por um
drama parecido foi Andrew Solomon. Em agosto de 1989, sua mãe,
Carolyn, descobriu um câncer no ovário e foi submetida a
quimioterapia. De nada adiantou. “Não quero que lembre de mim”,
recorda o escritor, “gritando em um leito de hospital”. Em
outubro de 1990, sua mãe teve acesso a uma droga que, ingerida por
via oral, daria fim ao seu sofrimento. Por incrível que pareça, sua
vida ganhou novo sentido. “Enquanto houver a mais remota chance de
eu ficar boa, continuarei com o tratamento. Quando disserem que estão
me mantendo viva, mas sem a menor chance de recuperação, eu paro”,
avisou.
No dia 19 de junho de
1991, o médico advertiu: se não fizesse uma cirurgia no intestino,
não conseguiria mais ingerir alimentos. Foi quando ela decidiu tirar
a própria vida. Carolyn morreu em casa, em Nova York, ao lado do
marido, Howard, e dos filhos, Andrew e David. Suas últimas palavras
foram: “Obrigada pela massagem, David!”, ditas para o caçula que
massageava seus ombros. “Penso em acabar com a minha vida todos os
dias. Mas, sempre opto por não fazê-lo. Saber que tenho escolha é
o que me mantém vivo e em movimento”, filosofa o autor que, em O
Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras, 2018), relata suas
batalhas contra a depressão.
“Sinto sua falta, mas
não me arrependo de tê-lo ajudado a fazer o que ele achava ser o
melhor para ele”
— Amy Bloom, esposa
de Brian Ameche, ex-jogador de futebol americano diagnosticado com
Alzheimer que optou pelo suicídio assistido em janeiro de 2020
O país onde se vai
para morrer
Na Suíça, pelo menos
três instituições promovem o suicídio assistido: Dignitas,
Lifecircle e Pegasos. A advogada Luciana Dadalto, Doutora em Ciências
da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
acompanhou o suicídio assistido de um australiano de 65 anos com
diagnóstico de Parkinson, na Pegasos, em 2019. Já o geriatra Daniel
Azevedo, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), o de um brasileiro de 70 anos com múltiplas
doenças crônicas, na Dignitas, em 2023.
No primeiro caso, o
paciente veio a óbito depois de administrar, ele próprio, uma
substância letal na veia. Como a eutanásia é proibida na Suíça,
é preciso que a própria pessoa acione a bomba de infusão. O
procedimento foi gravado e entregue à polícia para averiguação.
No segundo caso, o método seria diferente: em vez de morrer por
infusão intravenosa da droga, morreria após tomar a substância por
via oral. Acontece que, na manhã do procedimento, o paciente mudou
de ideia e voltou ao Brasil. “Não explicou o porquê da
desistência; apenas alegou motivos pessoais”, afirma Azevedo,
autor do livro O Melhor Lugar para Morrer (Appris, 2020). “Meses
depois, morreu em casa, por progressão da doença, recebendo o
cuidado paliativo necessário”.
Morte assistida é uma
expressão que engloba duas situações em que a pessoa doente recebe
assistência para abreviar a vida: suicídio assistido e eutanásia —
Foto: Gustavo Magalhães
A palavra paliativo vem
do latim pallium, e quer dizer “manto” ou “cobertor”. “Era
o manto usado para proteger das intempéries os cavaleiros que
lutavam nas cruzadas”, explica o publicitário Tom Almeida,
fundador do movimento InFINITO e presidente do Instituto Ana Michelle
Soares. Por analogia, paliativos são os cuidados que dão proteção
ao paciente e sua família contra o sofrimento causado pela doença
ou por seu tratamento.
No Brasil, uma das
maiores referências no movimento pela valorização dos cuidados
paliativos era a jornalista e escritora Ana Michelle Soares
(1982-2023). “AnaMi” tinha 28 anos quando descobriu o câncer de
mama e 32 quando constatou metástase no fígado. Autora dos livros
Enquanto Eu Respirar (Sextante, 2019), Vida Inteira (2021) e Entre a
Lucidez e a Esperança (2023), morreu no dia 21 de janeiro de 2023,
aos 40 anos. “Quando alguém diz ‘cuidado paliativo’, se pensa
logo ‘quando não há mais nada a fazer’. Mas, é o contrário. É
para viver com qualidade, mesmo tendo uma doença grave – não
importando se é incurável, crônica ou terminal. O importante é
tocar no assunto. Quanto mais a gente evita falar de morte, menos
informação tem”, analisa Almeida.
Doenças com tratamento
complexo costumam ser as principais razões que fazem pessoas
buscarem a prescrição de remédios para morrer. Um estudo publicado
na revista JAMA Internal Medicine, que envolveu instituições do
Canadá, Estados Unidos e Europa, indicou que pessoas com ELA
(Esclerose Lateral Amiotrófica) representavam 17% dos pedidos do
tipo. Em seguida estão pacientes com câncer - entre 3 e 4% do
total. Outras condições (como doenças cardíacas) somam menos de
1%. Prescrições do tipo exigem que o paciente tenha prognóstico de
vida de menos de seis meses. Mas as normas podem variar de acordo com
o país: na Holanda, por exemplo, há casos de quem já recebeu a
autorização após comprovar sofrimento mental ou doenças não
terminais, como a síndrome da fadiga crônica.
A cada dez, sete
desistem
Casos como o do
brasileiro que, no dia do suicídio assistido, voltou atrás em sua
decisão de morrer, não são raros. A proporção é de sete
desistências para cada dez inscrições. A estimativa é da médica
Erika Preisig. Ela é presidente da Lifecircle, fundada em 2011, e
autora do livro Dad, You Are Allowed To Die (2019). Desde 2022, a
Lifecircle não aceita novos membros. No momento, são 1.235
associados. Só do Brasil, são cinco – eram nove, mas três
morreram por causas naturais e um por morte assistida. “Quem
procura uma instituição dessas sofre de doença incurável, não
tem esperança de melhora e quer dar fim ao seu sofrimento”, conta.
“Essas pessoas não têm medo de morrer, têm medo de sofrer. A
morte é inevitável, mas o sofrimento pode ser insuportável”.
Assim como a Lifecircle
é uma dissidência da Dignitas, a Pegasos, criada em 2019, é uma
dissidência da Lifecircle. Seu fundador, Ruedi Habegger, é irmão
de Erika Preisig. “No Brasil, ainda não temos o direito de
escolher ‘como’ e ‘quando’ morrer porque tanto o suicídio
assistido quanto a eutanásia são proibidos por lei”, observa
Luciana Dadalto, autora de Testamento Vital (Foco, 2022). “Estamos
longe de legalizar qualquer forma de morte assistida porque o tema
esbarra em questões ideológicas e religiosas”.
Praticar suicídio
assistido na Suíça não é barato: custa 10 mil euros – algo em
torno de R$ 60 mil, na cotação atual. Isso, sem contar as despesas
com passagem e hotel. E pode levar dois meses, desde o primeiro
contato até o procedimento. É o que explica o jornalista Adriano
Silva, autor de O dia em que Eva decidiu morrer (Vestígio, 2025) e
editor do site Boa Morte. No livro-reportagem, ele conta a história
verídica de Eva (nome fictício), uma filósofa brasileira que
decidiu se submeter ao suicídio assistido na Suíça depois de
sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). O procedimento inclui,
entre outros trâmites, entrevistas em vídeo, consultas presenciais
e envio de exames, laudos e atestados. “O Brasil é um país
tanatofóbico [com medo da morte]”, define o autor. “Fazemos de
tudo para não pensar na morte ou falar dela. No entanto, não há
nada mais certo na vida do que morrer. É a única certeza que temos.
A única coisa que podemos fazer diante da própria finitude é
tentar morrer de modo digno e sem sofrimento. Ninguém deve ser
obrigado a ter uma morte horrível”.
Empecilhos legais no
Brasil
Dos 14 países onde a
morte voluntária assistida (MVA) é legalizada, oito deles estão da
Europa: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Holanda, Luxemburgo,
Portugal e Suíça. Dois são da América do Norte (EUA e Canadá),
dois da América do Sul (Equador e Colômbia) e dois da Oceania
(Austrália e Nova Zelândia). Quatro não legalizaram a eutanásia:
Alemanha, Áustria, Suíça e EUA. “Morte assistida é uma
expressão que engloba duas situações em que a pessoa doente recebe
assistência para abreviar a vida: suicídio assistido e eutanásia”,
explica o geriatra Daniel Azevedo. “No primeiro caso, o agente é a
própria pessoa; no segundo, o agente é externo. Mas, em ambos os
casos, os procedimentos são feitos por determinação da própria
pessoa”.
O psiquiatra Rodolfo
Furlan Damiano, um dos organizadores do livro Compreendendo o
Suicídio (Manole, 2021), aponta outra diferença: “Enquanto as
discussões sobre eutanásia costumam focar em pacientes com doenças
em estágio terminal, o suicídio assistido frequentemente aborda
casos em que o paciente ainda possui capacidade funcional, mas
enfrenta sofrimento físico ou psicológico intolerável”. No
Brasil, as duas práticas são ilegais. A eutanásia é considerada
homicídio e o suicídio assistido configura crime de participação
ou indução ao suicídio.
Em latim, eutanásia
significa “morte boa”. Isto é, sem sofrimento. O termo foi
proposto pelo filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) em Historia
Vitae et Mortis (1623). É quando o médico, ou algum membro da
família, provoca, deliberadamente e movido por compaixão, a morte
do paciente.
O sufixo “tanásia”
aparece em pelo menos dois outros termos médicos: ortotanásia
(“morte certa”) e distanásia (“morte lenta”). No primeiro
caso, o médico, em respeito à vontade de um paciente terminal,
resolve suspender procedimentos, tão sofridos quanto inúteis, que
prolongam de maneira artificial a vida do doente. No segundo caso, o
médico recorre a todos os meios, extraordinários e experimentais,
para prolongar a vida (e o sofrimento) de um paciente grave, quase
vegetativo, sem qualquer chance de cura. Um exemplo clássico de
ortotanásia, cita o médico Antônio Carlos Lopes, do livro
Eutanásia, Ortotanásia e Distanásia (Atheneu, 2018), é o de João
Paulo II (1920-2005): “Em seus últimos dias, o Papa decidiu morrer
em seus aposentos. Pediu para não ser mais levado ao hospital. Não
queria mais ser submetido a nenhum tipo de tratamento”.
Em 2017, Vitor Hugo
Brandalise transformou em livro, O Último Abraço (Record), uma
notinha de jornal. Três anos antes, tinha lido, na Folha de S. Paulo
de 30 de setembro de 2014, a história real de Nelson e Neusa Golla.
Todas as tardes, Nelson, de 72 anos, visitava a esposa, Neusa, de 70,
numa clínica de repouso. Vítima de dois AVCs, ela precisou ser
internada e entrou em depressão. Durante as visitas, o marido
gostava de umedecer a boca da mulher com água de coco, sua bebida
favorita. Um dia, a enfermeira avisou que, por recomendação médica,
ela passaria a ser alimentada por meio de sonda. “Quero morrer”,
balbuciou Neusa. “Me tira daqui”.
“A única coisa que
podemos fazer diante da própria finitude é tentar morrer de modo
digno e sem sofrimento. Ninguém deve ser obrigado a ter uma morte
horrível”
— Adriano Silva,
jornalista e autor do livro-reportagem "O dia em que Eva decidiu
morrer"
Em casa, Nelson
improvisou uma bomba com fogos de artifício, amarrou o artefato no
corpo e voltou para a clínica. No primeiro dia, não teve coragem de
acionar o explosivo. No segundo, idem. No terceiro, praticou o que
acreditava ser uma eutanásia. “Lembrem-se de nós nos momentos de
alegria”, pedia no bilhete de despedida no porta-luvas do carro.
Neusa morreu; Nelson, não. Preso, passou por uma clínica
psiquiátrica e chegou a responder por homicídio. Morreu cinco anos
depois, em 2019.
Cansaço de viver?
Em geral, os candidatos
a suicídio assistido são pacientes em fase terminal, que relatam
intenso sofrimento e se queixam de dores insuportáveis. Mas há
casos atípicos, como o do cientista inglês David Goodall
(1914-2018). Ele não tinha câncer, Alzheimer ou qualquer outra
doença grave. Apenas dizia que sua qualidade de vida tinha piorado
nos últimos 5 ou 10 anos. “O fenômeno da vida concluída é uma
vivência experimentada por pessoas de idade avançada”, explica a
advogada Sálvia Haddad, Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza (Unifor) e autora de Suicídio Assistido
por Completed Life (Foco, 2021). “O idoso deixa de sentir desejo de
viver porque acredita que não há mais o que viver. É um cansaço
existencial”.
Goodall tinha 104 anos
quando morreu, na manhã de 10 de maio de 2018, na Lifecircle. “Quero
morrer, e isso não é triste. Triste é ser impedido de morrer”,
declarou, em abril, no seu aniversário. Na véspera de sua morte,
jantou peixe e batata frita, com cheesecake como sobremesa. Antes de
receber uma injeção letal – a OMS recomenda que não seja
divulgado o nome da substância –, ouviu Ode à Alegria, da Nona
Sinfonia de Beethoven. Por não acreditar na vida depois da morte,
dispensou o funeral. Mas, pediu para seu corpo ser doado à medicina.
Quem acompanhou de
perto o suicídio assistido de David Goodall foi Philip Nitschke, o
presidente da Exit, instituição fundada em 1997 na Austrália. Em
1999, Nitschke foi procurado por uma professora francesa aposentada
chamada Lisette Nigot. Aos 77 anos, ela queria tirar a própria vida
antes de chegar aos 80. A exemplo de Goodall, Nigot não estava
doente; apenas já tinha vivido o suficiente. “Por que você não
escreve um livro ou viaja pelo mundo?”, sugeriu o médico. “Por
que você não cuida de sua vida?”, rebateu a mulher. “Quem sou
eu para dizer a ela o que fazer?”, pensou Nitschke, envergonhado.
Três anos antes, ele
tinha construído um aparelho que, depois de responder a uma série
de perguntas, como “Sabe o que acontece se você apertar esse
botão?”, liberava uma dose letal de barbitúricos (remédios que
têm efeito sedativo e calmante). Foi usado no dia 22 de setembro de
1996 por Bob Dent, paciente com diagnóstico de câncer de próstata.
Desde 2000, a Deliverance Machine (“Máquina da Libertação”, em
livre tradução) virou peça de museu: está em exposição no Museu
da Ciência, em Londres. Há alguns anos, Nitschke criou outra
engenhoca: um sarcófago futurista apelidado de “Sarco”. Em vez
de injetar a droga no braço do paciente, o aparelho libera
nitrogênio dentro de uma cápsula. “O suicídio assistido deveria
ser um direito de todos e não um privilégio para alguns”,
protesta Nitschke.
“Coloquem Kid Abelha
para eu escutar”
— Luciana Dadalto,
advogada que escreveu um “testamento vital”. Documento indica
cuidados pré-morte que ela quer receber – e até o que deseja
ouvir na hora de morrer
Testamento vital
encaminha final da vida
O músico Andreas
Kisser não sabia quase nada sobre cuidados paliativos. Só começou
a se inteirar do assunto quando a esposa, a empresária Patrícia
Kisser, deu início a um tratamento oncológico, em 2021. Em janeiro
daquele ano, ela foi ao médico investigar uma suposta pedra no rim.
Voltou da consulta com suspeita de câncer no cólon. Para destruir o
tumor, passou por sessões de quimioterapia. “Os últimos seis
meses foram os mais difíceis”, diz o viúvo. Patrícia morreu no
dia 3 de julho de 2022, aos 52 anos. “O Brasil é o terceiro pior
lugar do mundo para morrer”, argumenta o guitarrista do Sepultura,
referindo-se ao estudo que coloca o país na antepenúltima posição
em um ranking de 81 nações – estamos à frente apenas do Paraguai
e do Líbano. “Por que não temos a liberdade para decidir como
queremos viver nossos últimos dias?”.
Em homenagem à esposa,
Andreas Kisser fundou o Mãetrícia, movimento que debate, entre
outras pautas, o testamento vital. A advogada Luciana Dadalto já fez
o dela. No documento, recusa técnicas invasivas, como cirurgias e
biópsias, e evita procedimentos desnecessários, como ventilação
mecânica e reanimação cardiopulmonar, daqueles que prolongam o
tempo de internação, mas não melhoram a qualidade de vida. Há
espaço até para um pedido inusitado: “Coloquem Kid Abelha para eu
escutar”.
Outro termo ainda pouco
conhecido é hospice. Quem explica seu significado é a médica
oncologista Dalva Yukie Matsumoto, coordenadora do Serviço de
Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal de São
Paulo (HSPM-SP). O conceito nasceu no Reino Unido com a médica
Cicely Saunders. Em 1967, ela fundou o St. Christopher Hospice, o
primeiro do mundo a oferecer cuidado integral ao paciente, do
controle dos sintomas até o alívio da dor.
No Brasil, o governo
federal inaugurou, em 31 de janeiro de 2025, o Hospital Estadual Mont
Serrat, em Salvador (BA), o primeiro hospital público do país
especializado em cuidados paliativos. A unidade tem 70 leitos e
capacidade para atender 2 mil pacientes por mês. A equipe de 435
colaboradores abrange, entre outros profissionais de saúde, médicos,
enfermeiros e psicólogos. “Nosso objetivo não é adiar a morte do
paciente. Muito menos apressá-la. Queremos apenas aliviar sua dor e
oferecer apoio para a família”, explica Matsumoto.
ATENÇÃO: Se você ou
alguém que você conhece está lutando contra a depressão ou
pensamentos suicidas, entre em contato pelo telefone 188; o serviço
funciona 24 horas. O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza
apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e
gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob
total sigilo. Fonte: revistagalileu.