por Naiane Mesquita
Substância extraída da planta cannabis, popularmente conhecida como maconha, possibilita uma melhora significativa no tratamento de diversas patologias
23/08/2021 - Cercado de tabus, o uso do canabidiol como medicamento no tratamento de inúmeras doenças tem crescido no Brasil, inclusive em Mato Grosso do Sul. A substância extraída da planta cannabis, popularmente conhecida como maconha, possibilita uma melhora significativa no tratamento de patologias como Parkinson, Alzheimer, autismo, epilepsia e esclerose múltipla.
Foi graças ao óleo de canabidiol que o músico Francisco Saturnino Lacerda Filho, do Grupo Acaba, conhecido como Chico, teve alguns momentos de tranquilidade ao lado da família antes da demência mista, vascular com parkinsoniana, atingi-lo novamente. “Começamos a usar o óleo há quatro meses, quando meu pai começou a entrar na fase grave da demência. Ele tem demência mista, vascular com parkinsoniana. Os remédios não estavam mais segurando a doença e nem fazendo o efeito desejado”, explica a filha de Francisco, Carina Cury Lacerda. “Até chegarmos na gota ideal demorou cerca de 15 dias, e logo começamos a ver melhora. De um quadro catatônico, ele passou a sorrir, ter interações, mesmo que sem sentido e muitas vezes delirantes, relembrar hábitos antigos, ter as próprias vontades e fazer sinapses cerebrais”, detalha.
Aos 76 anos, Francisco agora luta novamente contra a doença, que evoluiu rapidamente no último mês. “Hoje ele se encontra em outro quadro, está entrando na fase grave da doença, com infecção e outros problemas intestinais. Convivemos com os problemas da doença e do corpo fragilizado, porém, o que o óleo de canabidiol nos trouxe e nos traz são momentos de alegria e de prazer, tanto para nós familiares quanto para o paciente”, conta a filha.
Carina conseguiu adquirir o óleo por meio do trabalho realizado pela Associação Sul-Mato-Grossense de Pesquisa e Apoio à Cannabis Medicinal Divina Flor, que viabiliza a substância a pacientes de MS. Segundo um dos diretores da associação, Alexander Onça, a ideia de criar a iniciativa surgiu em 2019, quando ele e uma amiga, a também diretora Jéssica Luana Camargo, receberam a prescrição médica para o uso do canabidiol. “Nós dois somos pacientes, eu sou portador de Síndrome de Tourette, descobri há 4 anos, e meu neurologista prescreveu o óleo. Nós percebemos como era difícil e caro importar, o custo do óleo é, em média, de R$ 2.500 na farmácia”, relata.
Depois de várias tentativas de adquirir o produto, os dois descobriram que existiam diversas associações do gênero no Brasil e participaram de um curso em São Paulo para aumentar o conhecimento sobre o tema. “Isso foi em 2019. A gente fez um curso pela Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa (SBEC), formada por médicos, psiquiatras, neurologistas, pessoas bem sérias e dentro da prefeitura de São Paulo. Foi bem avançado, e descobrimos vários médicos que nos apoiam aqui. Por meio da associação, a gente consegue os óleos para os pacientes com um custo menor, dependendo da dosagem. Cerca de 20% também são para doação gratuita, ou seja, pessoas que recebem gratuitamente o óleo quando não têm condições de arcar com os custos”, ressalta.
Por enquanto, a associação luta pelo direito de cultivar a planta em Mato Grosso do Sul. “Nossa autorização está transitando na Justiça Federal, no nome da associação, além disso, auxiliamos os pacientes a conseguirem o medicamento em outras associações”, esclarece. Para Carina, o óleo fez a diferença na vida da família nos últimos meses. “Desejo que todos que tenham o mesmo problema, ou outros, como autistas, pacientes oncológicos, etc, possam ter a oportunidade de fazer o uso do óleo”, frisa.
Quem também viu benefícios foi Fabiana Rodrigues, 36 anos, mãe da pequena Lara Gabriel de Souza Rodrigues, de apenas cinco anos, que tem paralisia cerebral e epilepsia de difícil controle. “Ela já toma há quase dois anos e mudou muito, os espasmos que ela tinha com grande frequência diminuíram. Faz um ano que eu comecei a adquirir o óleo pela associação, antigamente comprava de outro lugar que tinha um preço bem mais caro. O pessoal da associação me deu um suporte bem grande em vista do que eu pagava antes”, pontua.
Ciência
Os avanços no uso do canabidiol no Brasil são amparados pela ciência e por médicos, que têm prescrito mais a substância.
No entanto, segundo a médica neurocirurgiã Patrícia Montagner, nem sempre foi assim. “Eu me formei, fiz minha especialização médica e nunca tive acesso a esse conhecimento na academia, nunca ouvi falar no sistema endocanabinóide, nunca tive uma aula mostrando que essa planta, a cannabis, poderia ter potencial terapêutico no tratamento. O que aconteceu é que, depois que eu fiz minha formação em Medicina e em neurocirurgia, comecei a observar muitos pacientes com dor crônica, pacientes com transtornos neurológicos diversos, que não apresentavam resultados satisfatórios com as terapias habituais”, explica.
Patrícia é uma das médicas defensoras do uso do canabidiol no tratamento de diversas doenças, e percebeu durante a pandemia o aumento no interesse de pacientes pelo tratamento. Atualmente, ela prescreve o óleo para pessoas que convivem com dor crônica e com doenças neurológicas degenerativas, como Parkinson, Alzheimer, epilepsia, esclerose múltipla e fibromialgia. “A gente observa respostas dramáticas de pessoas com fibromialgia que estavam com quadros de dor há 15, 20 anos, tentando a melhora com várias medicações, como antidepressivos, anticonvulsivantes, sedativos, enfim, analgésicos diversos e que não apresentavam respostas satisfatórias e, quando foram suplementados [com o canabidiol], apresentaram uma resposta excelente, no sentido de controle da dor, da fadiga e de sintomas associados”, comenta.
Segundo a médica, ainda há muito o que se investigar sobre a cannabis. “Existe muita ciência para explicar por que a planta funciona em diferentes problemas de saúde. A planta já é explorada para fins terapêuticos há milhares de anos, não é novidade isso não, tratados de farmacopeia, de medicina, já referiam o potencial dessa planta. O que tem de novidade é descobrir como e por que a planta funciona”, explica.
Graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), o médico psiquiatra Wilson Lessa também é um defensor da cannabis medicinal no Brasil, e não só pelo ponto de vista do canabidiol. Segundo Wilson, as pesquisas sobre a cannabis remetem à década de 1980. “Hoje, das doenças psiquiátricas que a gente tem alguma possibilidade terapêutica dos canabinoides, e não necessariamente apenas o canabidiol, mas principalmente ele, temos o autismo, as doenças neurodegenerativas, como Parkinson, Alzheimer e esquizofrenia, com excelentes resultados”, pontua.
De acordo com o médico, foram observadas melhoras no tratamento de ansiedade e de Síndrome de Tourette, neste caso com o uso do tetrahidrocanabinol (THC), substância também encontrada na maconha. “Existem dificuldades em fazer estudos científicos, já que a planta é proibida, mas ao longo desses próximos cinco anos vamos ver muitos outros estudos de qualidade, de evidência científica boa. Estamos vendo apenas uma ponta do iceberg”, acredita. Fonte: Correiodoestado.